CAPÍTULO 1
Conheci
outrora uma família que morava em São Clemente.
Havia
em sua casa agradáveis reuniões de que fazia os encantos uma filha, bonita moça
de dezoito anos, corada como a aurora e loura como o sol.
Amália
seduzia especialmente pela graça radiante e pela viçosa e ingênua alegria que
manava nos lábios vermelhos como dos olhos de topázio, e lhe rorejava a lúcida
beleza.
Sua
risada argentina era a mais cintilante das volatas que ressoavam entre os
rumores festivos da casa, onde à noite o piano trinava sob os dedos ágeis da
melhor discípula do Amaud.
Acontecia‑lhe
chorar algumas vezes por causa de um vestido que a modista não lhe fizera a
gosto, ou de um baile muito desejado que se transferia; mas essas lágrimas
efêmeras que saltavam em bagas dos grandes olhos luminosos, iam nas covinhas da
boca transformar‑se em cascatas de risos frescos e melodiosos.
Tinha
razão de folgar.
Era
o carinho dos pais e a predileta de quantos a conheciam. Muitos dos mais
distintos moços da corte a adoravam.
Ela,
porém, preferia a isenção de menina, e não pensava em escolher um dentre tantos
apaixonados, que a cercavam.
Os
pais, que desejavam muito vê‑la casada e feliz, sentiam quando ela recusava
algum partido vantajoso.
Mas
reconheciam ao mesmo tempo que formosa, rica e prendada como era, a filha tinha
o direito de ser exigente; e confiavam no futuro.
Outra
e bem diversa era a causa da indiferença da moça.
Amália
não acreditava no amor. A paixão para ela só existia no romance.
Os
enlevos de duas almas a viverem uma da outra não passavam de arroubos de
poesia, que davam em comédia quando os queriam transportar para o mundo real.
Tinha
sobre o casamento idéias mui positivas.
Considerava
o estado conjugal uma simples partilha de vida, de bens, de prazeres e
trabalhos.
Estes,
não os queria; os mais, ela os possuia e gozava, mesmo solteira, no seio de sua
família.
Era
feliz; não compreendia, portanto, a vantagem de ligar‑se para sempre a um
estranho, no qual podia encontrar um insípido companheiro, se não fosse um
tirano doméstico
Estes
pensamentos, Amália não os enunciava, nem os erigia em opiniões. Eram apenas os
impulsos íntimos de sua vontade; obedecendo a eles, não tinha a menor pretensão
à excentricidade.
Ao
contrário, como sabia do desejo dos pais, aceitava de boa mente a corte de seus
admiradores. Mas estes bem percebiam que para a travessa e risonha vestal dos
salões, o amor não era mais do que um divertimento de sociedade semelhante à
dança ou à música.
Conservando
a sua independência de filha querida e moça da moda, Amália não nutria
prejuízos contra o casamento, que aliás aceitava como uma solução natural para
o outono da mulher.
Ela
bem sabia, que depois de haver gozado da mocidade, no fim de sua esplêndida
primavera, teria de pagar o tributo à sociedade, e como as outras escolher um
marido, fazer‑se dona de casa, e rever nos filhos a sua beleza desvanecida.
Ate
lá, porem, era e queria ser flor. Das suas lições de botânica lhe ficara bem
viva esta recordação, que o fruto só desponta quando as pétalas começam a fanar
se; se vem antes disso eiva.
Esta
moça pertencia a uma variedade de mulher, que se pode bem classificar como o
gênero rosa. São elegâncias que só florescem bem no clima ardente do baile, ao
sol do gás. A luz é a alma de sua formosura. Na sombra desfalecem e murcham.
Amália
vivia no salão; só o deixava para repousar. Seu dia era a noite com os lustres
por astros. Quando em toda a cidade não havia divertimento algum que a
atraisse, ela passava a noite em casa; mas com o seu piano, o seu contentamento
e a sua graça improvisava uma festa.
A
volubilidade desse gênio não era, como alguns supunha, efeito de Uma alma fria,
indiferente e egoísta Enganavam‑se aqueles que viam na filha do Sr.Veiga uma
dessas mocas embotadas pela vida precoce da sala.
Ao contrário, ou pela severa educação que recebera, ou
por tardio desenvolvimento, Amália conservara‑se criança além do período
natural da infância. Aos dezessete anos ainda se lembrava de suas lindas
bonecas, bem guardadas em uma cômoda, onde as conservava como recordação da
meninice; e mais de uma vez aconteceu‑lhe no dia seguinte a um baile
representar ao vivo com essas figuras de cera e cetim as quadrilhas que
dançara.
Quando
o coração menino dessa moça elegante e espirituosa pulsou pela primeira vez, já tinha ouvido
tantas vezes declarações e protestos ardentes, que não passavam para ela de uma
linguagem polida e lisonjeira, adotada na sociedade
Gabar‑lhe
a beleza, ou elogiar‑lhe o vestido, era a mesma fineza. Quando um dos seus
apaixonados animou‑se o primeiro a dizer‑lhe com a voz trêmula que a amava, ela
o ouviu calma, sem a menor emoção, como se lhe falassem de música ou de
pintura. O que lhe causou alguma surpresa foi o esforço e turbação do
cavalheiro ao proferir aquelas palavras.
Entretanto,
quem observasse a vida íntima dessa moca conheceria o fundo de sensibilidade e
temera que havia sob aquela aparência frívola e risonha. Não só tinha amor
extremoso à família e dedicação pelas amigos, mas em certos momentos, como se a
afogasse uma exuberância do coração. cobria a mãe de carinhos.
Alguma
vez, nas horas de repouso, quando a imaginação vagueia pelo azul, ela fazia
também como todas as moças o seu romance; com a diferença, porém, que o das
outras era esperança de futuro ardente
aspiração d alma; enquanto o seu não passava de sonho fugace, ou simples
devaneio do espírito.
Um
traço singular destas cismas é que elas faziam contraste ao modo habitual da
moca, ao seu gênio Essa natureza alegre e expansiva, esse coração incrédulo e
desdenhoso, quando fantasiava os seus idílios, reservava sempre para si a
melancolia, a abnegação e o obscuro martírio de uma paixão infeliz.
Seria
um pressentimento? Creio eu que não era senão uma antítese natural da
imaginação com o espírito. E muito freqüente encontrarem‑se caracteres joviais
que têm o sentimento elegíaco, e, ao contrário, misantropos com uma veia cômica
inexaurível
CAPÍTULO 2
Na
chácara contígua à do Sr. Veiga, pelo lado esquerdo, morava um desses homens
que o povo designa com o nome de esquisitos.
Os
amigos o chamavam Carlos; os estranhos tratavam‑no por Sr. Hermano; ele, porém,
costumava assinar‑se H. de Aguiar.
Para
merecer do vulgo a qualificação de esquisito, basta as vezes sair da trilha
batida; mas o Sr. Hermano tinha com efeito hábitos e ações que excitavam o reparo
e lhe davam certo cunho de originalidade.
Não
se lhe conhecia profissão; sabia‑se entretanto que era abastado, pois além da
chácara de sua residência, possuía apólices e prédios na cidade.
Sua
casa vivia constantemente fechada na frente, e tinha o aspecto de uma morada em
vacância pela ausência do dono. Quem olhava pela grade do portão, sempre
trancado, não descobria outro indicio de habitação a não ser o fumo da chaminé.
Todavia
nas raras vezes em que soava a grossa campa da entrada, aparecia logo um velho
criado, todo vestido de preto, que introduzia a visita com uma cortesia
respeitosa mas fria e taciturna.
O
dono da casa costumava ir à cidade três vezes na semana, para tratar de seus
negócios, ou talvez para não se isolar totalmente do mundo de que já vivia tão
apartado. Também saia de passeio, a pé ou a cavalo pelos arrabaldes.
Certas
ocasiões mostrava‑se afável, polido, atencioso e expansivo, retribuindo os
cumprimentos que recebia, e dirigindo‑os as pessoas de seu conhecimento. Era
então um modelo do homem de boa sociedade e fina educação.
Outros
dias estava de tal modo concentrado que passava pelas ruas como um incógnito;
não falava a ninguém; não fazia caso das pessoas de maior consideração e a quem
acatava. Se algum amigo vinha‑lhe ao encontro, recebia‑o sem parar com a
mascara muda e impassível da abstração, e logo o despachava com um aperto de
mão automático.
Estas
alternativas sucediam‑se por fases; duravam semanas e meses. A fisionomia
denunciava logo a conjunção desse espírito com o mundo. Havia nele, como em
todos nós, dois homens, o íntimo e o social; a diferença é que nele as duas
faces revezavam‑se, enquanto que nos outros elas de ordinário são fixas e
formam o direito e o avesso do indivíduo.
Ainda
mesmo nos seus dias de misantropia o semblante do Sr. Hermano era tão modesto e
sereno que ninguém via na sua desatenção orgulho ou falta de civilidade.
Atribuíam
estas desigualdades de caráter ao gênio e não se ofendiam com elas. Em geral os
vizinhos e conhecidos o saudavam sempre cordialmente, embora ele passasse sem
olhá‑los.
Do
que poucos sabiam, e só alguns amigos se lembravam, era da primeira mocidade de
Hermano, quando ele passava por um dos mais brilhantes cavalheiros dos salões
fluminenses. Sua graça natural, o primor
de suas maneiras, e as seduções do seu espírito, o distinguiam entre todos como
um tipo de elegância.
Eram
os arrebóis dessa esplêndida mocidade que ele ainda mostrava nos seus momentos
de expansão, quando desprendia‑se da constante preocupação.
Um
dia, no meio de seus triunfos, quando a sua estrela mais brilhava, correu a
noticia de que Hermano estava para casar‑se, o que não devia surpreender em sua
idade. Foi, porém, geral a admiração quando se soube que D. Julieta, a moça por
quem se apaixonara a ponto de sacrificar‑lhe a liberdade. não era rica nem
bonita.
Ninguém
esperava que ele, nas condições de pretender as filhas dos primeiros
capitalistas e de escolher entre as mais aristocráticas belezas da corte,
fizesse um casamento tão desvantajoso.
D. Julieta não
freqüentava a alta sociedade; mas algumas pessoas da creme' a tinham encontrado
por vezes em partidas familiares; e essas compreenderam a repentina que ela
tinha inspirado ao noivo.
Como
estátua a moça era um esboço imperfeito, ainda mesmo com as correções que
aplica o molde de um traje elegante, ou a feliz disposição dos enfeites.
Imagine‑se
que um cinzel inspirado idealizava esse esboço e dava às linhas do perfil a
harmonia que lhes negara a natureza. Tal seria, não o retrato de Julieta. mas o
tipo que sua pessoa refletia na imaginação do artista a quem servisse de
modelo.
Havia
em seu olhar, em sua voz, em seus movimentos, inflexões maviosas, mas de tão
vivo relevo que se esculpiam como se tomassem corpo. Depois de apagar‑se o
gesto, sentia‑se ainda a sua doce impressão no vulto a que animara.
O
espírito fino, meigo e gentil de Julieta não tinha expansões brilhantes. Era
modesto, e às vezes tímido. Entretanto o que ela dela por mais simples que
fosse, trazia o calor de uma emoção intima. Sua palavra exalava os perfumes de
uma alma em flor.
Ao
seu lado e conversando com ela, um homem de rigor estético poderia esquivar‑se
ao enlevo que infundia a suprema distinção dessa moça, e notar em suas feições
e em seu talhe a ausência da beleza plástica
Mas
apartando‑se dela e perdendo‑a de vista, raro era o que não levava na fantasia
um ideal suave e gracioso, que ofuscava a imagem das mais radiantes formosuras
de salão.
O
primeiro encontro de Hermano com a noiva explica bem a influência que ela devia
exercer em sua vida.
Ao
sair do teatro lembrou‑se do convite que recebera para uma partida em casa de
pessoa de sua amizade, a quem devia atenções. Dirigiu‑se para lá, com a
intenção apenas de fazer ato de presença.
Quando
entrou no saguão, cantava uma senhora a ária da Lúcia de Lammemor. A voz, que não era extensa, comoveu‑o. Parou
para escutar; e viu desenhar‑se em seu espírito a imagem esbelta e vaporosa da
virgem que o amor enlouquecera.
Terminado
o canto, subiu. Havia na sala muitas senhoras algumas de seu conhecimento,
outras que via pela primeira vez. Notou entre estas uma moça alva, de cabelos
negros; era Julieta. Sem que lho dissessem, por uma rápida intuição adivinhou que fora ela a intérprete inspirada
da música de Donizetti.
Teve
pois uma decepção Ele imaginara sempre uma Lúcia loura como a filha das
nevoentas montanhas da Escócia; e vinha achar a sua cópia em um tipo tão
oposto.
Hermano
demorou‑se mais do que tencionara; ficou até o fim da partida. Por mais de uma
vez aproximou‑se de Julieta e conversou com ela Quando se recolheu, cantava
mentalmente o Bell'anima, que ouvira executado por Mirati; e pensava que talvez
Lúcia apesar de escocesa, tivesse cabelos pretos como a Maria Stuart de Walter
Scott .
Julieta
era filha de um coronel reformado de nosso exercito, que servira por algum
tempo em Goiás Na sua primeira expedição para aquela província acompanhou‑o a
mulher apesar de estar mui próxima a dar à luz. A menina nascera em viagem.
Uma
escrava que o oficial trazia, fatigada das jornadas, mal podia acudir à senhora
Foi
pois o furriel Abreu que serviu de ama‑seca a menina, e tal amizade tomou‑lhe
que não quis mais separar‑se dela. Completando o tempo de serviço obteve baixa
e ficou em companhia do oficial agregado
Hermano freqüentou a casa do coronel Soares. Pouco
mais de mês depois do seu primeiro encontro com Julieta manifestou‑lhe os seus
sentimentos, que aliás já eram conhecidos da moça, e pediu‑lhe um
consentimento, que tinha razão de esperar.
Ela
ficou um momento pensativa; depois disse com o tom grave de uma convicção
profunda
—
O casamento é uma fatalidade.
Como
Hermano interrogava‑lhe o semblante para conhecer o sentido de suas palavras,
ela acrescentou:
—
Meu marido há de pertencer‑me de corpo e alma, como eu a ele, e para sempre. É
assim que entendo o casamento.
—
Penso da mesma maneira.
—
Para sempre é eternamente.
—
Compreendi todo o seu pensamento, Julieta. e não imagina o meu júbilo por
encontrar tão perfeita identidade de sentimentos na mulher a quem amo. Sempre
acreditei que o casamento não deve ser uma simples união social, mas a formação
da alma criadora e mãe, da alma perfeita, de que nós não somos senão as
parcelas esparsas. Essa alma uma vez formada, só Deus a pode dividir e mutilar.
O
casamento realizou‑se pouco tempo depois; e os noivos foram morar na casa de
São Clemente, a qual tinha sido preparada com esmero para recebê‑los.
Abreu
acompanhou sua filha de criação. Ele a tinha recebido em seus braços ao nascer,
e contava não deixá‑la senão quando Deus o chamasse.
APÍTULO 3
Aquela
casa de São Clemente foi para os noivos o ninho do amor e da felicidade; mas o
ninho perene, sem estações, sem primavera, sem lua‑de‑mel.
Essa
ardente efusão de duas existências durava desde o primeiro instante, não tinha
lapsos nem desmaios.
Hermano
aproximava‑se dos trinta anos, e vivera muito nesse tempo. Julieta aos vinte
anos não conhecia o mundo; e seu coração virgem era um manancial de ternura.
Que
diálogo inefável entre aquela inteligência pródiga e essa inocência ávida de
saber, rica de afeto?
O
passado de Hermano, desde a primeira infância até o casamento, Julieta queria
vivê‑lo, dia por dia, hora por hora, se fosse possível, para amar seu mando em
cada um desses momentos anteriores a ela.
O
presente não lhe bastava. nem o futuro. Carecia de remontar‑se à origem dessa
existência que lhe pertencia, para soldá‑la ainda mais intimamente a si, de
modo que não lhe fosse possível marcar a época de sua união. Então o casamento
teria sido apenas a consagração social do vinculo de duas almas gêmeas
Por
seu lado Hermano sentia também a necessidade de vazar no coração ingênuo e
casto da esposa, como em um crisol, os seus pensamentos, as idéias de que a
sociedade o imbuíra, e assim apurar sua consciência naquela chama celeste.
Sua
individualidade, escoriando-se da liga mundana, apagando os traços de uma
mocidade fácil, identificava-se de mais em mais com o espírito puro e imaculado
da moça e embebia‑se nele como o raio do sol que se infunde na seiva da árvore
e gera a flor.
Hermano
e sua mulher freqüentavam a sociedade onde os chamavam Iam, porém, aos
divertimentos unicamente para se desobrigarem de um dever de cortesia e
posição; ou talvez para certificarem‑se de que nada faltava à sua felicidade.
Depois
de uma ou duas horas passadas no teatro ou nos salões, recolhiam‑se pressurosos
à sua casa e ao seu amor.
Duas
vezes por mês reuniam as famílias de sua amizade. Essas longas noites, em que
se deviam a seus convidados, eram uma ausência, uma separação para eles. Tinham
o mundo entre si.
Que
saudades não sentiam um do outro nesses momentos; e com que anelos encontravam‑se
de novo na sua querida solidão?
Amália
era então uma criança de nove anos. No dia do casamento tinha vindo do colégio
passar o domingo com a família. À noite vira a chácara vizinha iluminada e os
noivos que chegavam com grande acompanhamento de carros.
Reparando
na elegância e garbo do par que subia as escadas de pedra alcatifadas de fino
tapete, a menina pensou no dia de seu casamento; e desejou que seu noivo fosse
tão lindo como aquele
Nos
outros domingos que passava em casa, quando chegava à janela, via os noivos
sempre juntos passeando no jardim, ou sentados em um banco à sombra dos bambus.
Um
dia ardeu‑lhe a curiosidade de espiar os aposentos da noiva. O fundo da chácara
dava para a montanha; e o declive fora cortado em socalco com terraços que se
sucediam em degraus.
De
uma dessas elevações dominava‑se a casa vizinha especialmente a asa do
edifício, que ficava fronteira, a duas braças apenas de distância.
Foi
daí que Amália, aproveitando uma ocasião em que as janelas estavam abertas, viu
o quarto de dormir e o toucador da noiva, ambos preparados com luxo e primor.
No
toucador, sentada junto a uma mesa de charão Julieta procurava numa caixinha de
jóias uns botões para os seus punhos de cambraia. O mando entrou. Em pé, por
detrás da cadeira, colheu nas mãos o rosto da moça e cobriu‑o de beijos.
A
travessa que os espiava, disparou a rir, Julieta corou e quis afastar‑se; porem
Hermano a reteve e beijou‑a de novo tranqüilamente, como para afrontar a
malícia da menina com a castidade de sua carícia.
Pouco
tempo depois desta cena, o Sr. Veiga mudou‑se para o Andaraí, por causa da
perda de sua sogra, e alugou a casa de São Clemente, para onde D. Felícia não
quis voltar depois do golpe que ali sofrera.
A
existência dos dois noivos continuou sem alteração; sua felicidade tornou‑se
com o tempo mais serena e por isso mesmo mais intensa.
Afinal
apareceu uma ligeira nuvem naquele céu aberto. Estavam casados havia mais de
três anos, e não tinham filho. Começavam a sentir essa falta; era o primeiro
desejo não satisfeito.
Engolfados
no misticismo do amor, tão grato às imaginações vivas, eles consolavam‑se com
uma teoria psicológica um tanto abstrata, mas original e encantadora.
Hermano
dissera uma vez à mulher:
—
Um filho é uma porção de nós que se destaca para formar outro eu. Nós, Julieta,
nos queremos exclusivamente, e nos possuímos com tanta ânsia, que nenhum quer
perder do outro a menor parcela, ainda mesmo reproduzir o nosso ser.
A
mulher aplaudia esta explicação que ela primeiro balbuciara sem poder exprimi‑la;
e o egoísmo cheio de enlevos desse amor inexaurível substituia para o feliz
casal o outro penhor que a sorte lhes negara.
Todo
esse encanto, a asa negra do infortúnio o apagou em um momento. Hermano perdeu
a mulher; e a perdeu justamente quando sua união ia ser abençoada com um filho.
Um
aborto levou Julieta. Suas últimas ao ao foram estas que ela proferiu antes de
perder o conhecimento:
—
Minha alma não podia separar‑se da tua Hermano.
Desde
esse momento o marido caiu em um letargo profundo que o conservou alheio ao que
se passava. Esse estado que se assemelhava à idiotia, durou por muito tempo.
O
Dr. Teixeira, amigo de infância de Hermano, partindo para a Europa a fim de
praticar nos hospitais de Paris levou consigo o infeliz viúvo, na esperança de
que a viagem o arrancasse àquela estupefação em que o deixara a perda da
mulher.
Antes
de seis meses Hermano voltou da Europa com Abreu que o acompanhara; foi morar
na casa de São Clemente, onde tomou‑se o homem que era, quando o encontramos
cinco anos mais tarde.
Dias
depois de sua chegada deu‑se um incidente que não escapou à curiosidade dos
ociosos da vizinhança. Pararam no portão duas carroças conduzindo caixotes de
tamanho descomunal . O que, porém mais intrigou os espíritos foi a
circunstância de arrombar‑se uma parede para introduzir os volumes no interior
da casa.
Em
cada bairro há um ou mais parlatórios, que são uns moinhos onde se tritura a
matéria‑prima para o fabrico da opinião pública. Outrora era especialidade das
boticas; hoje serve uma loja qualquer. Para ai, para esses pontos, afluem todos
os mexericos que os escravos levam às tabernas, e todos os boatos e murmurações
que os noveleiros se incumbem de propagar.
Muito
se falou dos tais enormes caixões. Na opinião de alguns tinham eles
desembarcado na Copacabana e entrado por contrabando na cidade. Outros,
admitindo o contrabando, afirmavam que passara pela própria Alfândega.
Finalmente, choviam as suposições acerca do arrombamento da parede e da carga
misteriosa que se ocultara até dos criados da casa, com exceção do velho Abreu.
O
Sr. Veiga voltou a ocupar sua antiga casa. Amália teve muitas ocasiões de ver
na alameda da chácara contígua passar o vulto, ainda elegante, mas grave de
Hermano.
Não
lhe causava, porém, o aspecto daquele homem a menor impressão A moça, se
guardara as recordações da menina não as tinha presentes ao espírito. Olhando a
casa outrora tão brilhante e admirada por ela, revendo o feliz noivo agora
solitário e abatido, nem sequer notava a diferença dos primeiros tempos.
Sua
alegria ainda era um esplendor sem crepúsculos.
CAPÍTULO 4
Era
noite de partida em casa do Sr. Veiga.
Amália
ainda não tinha perdido a sua jovialidade, e continuava a ser uma das mais
gentis princesas da moda.
Nesse
dia vestira‑se mais cedo para ensaiar com uma amiga o dueto que tinham de
cantar logo mais. Deixava ela o piano, quando entraram na safa ainda erma duas
pessoas.
Uma,
o Sr. Borges, era íntimo da casa e aparentado com a família. A outra, que
Amália não conhecia, foi lhe apresentada em termos de anúncio:
—
O Dr. Henrique Teixeira. médico muito distinto. ultimamente chegado da Europa;
urna notabilidade oftalmológica.
Borges encontrara o companheiro no portão de Hermano:
—
Por aqui doutor?
—
Vim jantar com um amigo, e estou à espera de meu tílburi, que mandei voltar às
sete horas. Receio que o cocheiro me logre.
—Ah!
é amigo do Sr. Hermano?
—
Amigo de infância.
Borges
convidou o doutor para a partida do parente; e tais e tão repetidas foram as
instâncias, que o outro acedeu por fim.
Diversos
motivos influíram para aquele convite reiterado. Além do desejo de obsequiar o
médico e de arranjar mais um cavalheiro para a dança, Borges fora movido
sobretudo pela curiosidade de saber particularidades acerca do excêntrico
viúvo.
Depois
dos cumprimentos e de algumas ligeiras observações relativas à Europa, Borges
dirigiu a conversa para o assunto que mais lhe interessava.
—
É verdade que o Hermano está sofrendo da cabeça, doutor?
—
Não é exato! acudiu Henrique Teixeira com vivacidade. Tem a razão tão firme e
tão lúcida como nunca; e o senhor deve saber que ele mostrou sempre muito tino
e bom senso. A prova é que deixando‑lhe o pai a livre disposição de sua
fortuna, quando não tinha mais de dezessete anos, não só a conservou, como
soube aumentá‑la, apesar de sua vida elegante.
—
Sei perfeitamente; mas tinham‑me dito que ele não regula desde que ficou viúvo.
—
Com efeito, Carlos sofreu um abalo terrível com esse golpe. A morte de D.
Julieta, que ele ainda não esqueceu, nem esquecera, causou‑!he uma espécie de
paralisia moral. Durante dois meses não pronunciou uma palavra; vivia
mecanicamente; era um autômato movido por um velho criado, o Abreu, cuja
dedicação por ele é a de um pau extremoso.
—
Tenho visto este criado; se não me engano é quem governa a casa.
—
Estava eu resolvido a passar algum tempo em Paris para dedicar‑me aos estudos
de minha profissão. Apressei a partida para levar Carlos comigo e distraí‑lo .
Nem a vi agem , nem o turbilhão da vida parisiense produziram o resultado que
eu esperei Continuava indiferente a tudo: nada o interessava; nada prendia‑lhe
a atenção.
—
Então, doutor, sempre houve alguma coisa?
—
Sem dúvida, mas não demência. O estado de Carlos era simplesmente uma
insensibilidade moral: um desprendimento do mundo, que o tomava impassível ao
movimento social. Vivia em si e de si, das recordações que enchiam sua alma.
Nunca, porém, eu notei no seu espírito a menor vacilação, e muito menos um
desvario. Quanto aos estranhos, viam nele um homem frio, concentrado, de poucas
falas, mas de juízo seguro e talento refletido.
—
O senhor defende seu amigo com tanto calor que me faz desconfiar da justiça da
causa, doutor, disse Amália a sorrir.
—
A crítica é espirituosa, minha senhora, e eu já a tinha lido em seus lábios
antes que eles a preferissem. Mas eu quero a este amigo, como a um irmão; e dói‑‑me
profundamente essa suspeita de loucura,
que alguns malévolos se incumbiram de espalhar. Felizmente Carlos restabeleceu‑se;
aquela impassibilidade que me assustava dissipou‑se como por encanto.
—
Em Paris? perguntou Borges com ar de dúvida, apenas de leve dissimulado pela
cortesia
—
Em Paris, numa visita que fizemos ao Louvre Carlos sempre teve gosto e
inclinação para as artes; lembrei‑me um dia de mostrar‑lhe o museu de pintura e
escultura. Deixei‑o um instante para falar a a!guém que encontrara na sala;
quando o procurei fui achá‑lo diante de um quadro, creio que a Ester ou a
Suzana do Veroneso. Voltou‑se; já não era o homem absorto e sombrio que ali
entrara: tinha no semblante e em toda a sua pessoa, a expressão afável dos mais
belos dias de sua vida. Vi em seu olhar uma interrogação e pensando que ela se referia
à tela, improvisei admiração, que não sentia, pois, surpreso e contente daquela
transfiguração, eu nenhuma atenção prestava ao quadro. Não obstante
prodigalizei elogios ao desenho, ao colorido, à criação do grande pintor.
"Não; não é isto!. . disse‑me ele. Mas tu não podes compreender a beleza
que este quadro tem para mim". Eu percebi que ele achara nessa imagem uma
reminiscência de sua Julieta.
—
Ora, descobriu‑se afina! a Fênix dos maridos! exclamou Amália com uma risada
expansiva dirigindo‑se à amiga. Nenhum poeta até hoje, que eu saída, animou‑se
a inventar um Penélope masculino. Estava reservada esta glória ao Dr. Teixeira.
—
Antes de mim um poeta, e dos mais ilustres, criou esse no Frei Luís de Sousa,
que a senhora talvez não conheça, porque é escrito em nossa língua.
—Até
o vi representar, o que deve parecer‑lhe ainda mais admirável, depois que os
senhores fizeram do Rio de Janeiro um pequeno Paris de bulevar. Mas esse marido
que voltou ao cabo de vinte anos de exílio, foi o amor da mulher que o trouxe,
ou a lembrança da pátria, a saudade de seu velho Portugal?
—
Não se lembra de seu desespero por encontrar a mulher unida a outro? É Uma das
cenas mais tocantes.
—
Esse amor caduco e de cabelos brancos, pois tinha mais de vinte anos...
—
Como o de Penélope, acrescentou Teixeira em nota.
—
Esse fóssil conjuga! é um monstro ideado por Garrett para complicar a situação
das duas metades, que o aparecimento do primeiro marido veio separar. O drama
está nessa separação realmente incômoda, para quem não gosta de sair de seus
hábitos. Assim o romeiro bem longe de ser o herói, não passa de um pretexto, de
um incidente de um motivo. Faz ai o mesmo oficio de pai cruel que não deixa a
filha casar‑se democraticamente com qualquer cidadão da rua.
A
chegada de uma senhora a quem Amália foi receber, cortou a réplica do doutor,
que ria da malícia da moça.
—
Mas então o Hermano desde aquela visita do Louvre restabeleceu‑se? perguntou o
Borges, que via a conversa apartar‑se do tema.
—
Completamente. Daí em diante foi outro, ou antes, foi o mesmo homem que todos
conheceram na época de seu casamento. Aquele painel tinha operado nele uma
verdadeira ressurreição.
Amália
que tomara o seu lugar, interrompeu de novo o médico para insinuar uma
observação maliciosa.
—
Foi o painel, ou alguma estátua?
—
Nós estávamos na sala de pinturas, minha senhora.
—
Pergunto se não seria alguma estátua viva que operou 0 milagre da ressurreição.
Alguma Madalena que passava?
—
Não o conhece!
—
Ou talvez o seu amigo seja como certos escultores que compõem a sua estátua,
tirando de cada modelo as belezas que ele possui e combinando‑as entre si.
O
doutor Henrique Teixeira fitou a moça com alguma surpresa. A candura do sorriso
que brincava nos lábios faceiros convenceu‑o de que Amália não compreendia o
alcance das palavras que preferia.
O
médico chegava da Europa onde se tinha demorado quatro anos; e não sabia que a
invasão do romance realista que nos vem de Paris tem posto em moda certa gíria
de cafés e bastidores que algumas senhoras vão repetindo como linguagem de bom‑tom
sem consciência das enormidades que às vezes escondem tais ditos espirituosos.
O
Dr. Teixeira deixou passar a observação da Amália; e, para não acentuá‑la com
uma pausa, continuou a referir a Borges o episódio da viagem de Hermano
—
Pode acreditar no que lhe digo. Carlos não tem o menor sintoma de perturbação
mental. Nesse mesmo dia da nossa visita ao Louvre emancipou‑se da minha
solicitude e viveu sobre si. Depois que voltou ao Rio de Janeiro entretivemos
uma correspondência seguida; e nas suas cartas respirava certo contentamento
intimo e sereno, que eu vim encontrar na sua vida habitual.
—
Então é feliz o seu amigo? perguntou Amália
—
Acredito que sim.
—
E o senhor afirmou que ele não tinha esquecido a mulher e nem a esqueceria
nunca?
—
Afirmei, e posso prová‑lo, acudiu Henrique Teixeira picado pelo remoque da moça
—
Há de ser difícil.
—
Promete‑me guardar reserva sobre o que lhe contar?
—
Mais do que reserva. Prometo‑lhe não acreditar nem uma palavra do seu romance,
o que não me impedirá de aplaudi‑lo, se for interessante como espero.
Nesse
momento a sala enchia‑se de convidados; e o piano dava o aviso da primeira
quadrilha.
Amália
tomando o braço de seu par, separou‑se do doutor com esta palavra, confeita em
um sorriso:
—
Depois.
CAPÍTULO 5
Em
meio da partida, quando servia‑se o chá, Amália com um aceno do leque indicou a
Henrique Teixeira uma cadeira que vagara a seu lado.
—
E o nosso folhetim?
—
Refleti, D. Amália; o melhor é falarmos de outra coisa.
—
Confessa, portanto, que seu amigo é como os outros; mais um exemplar desse
compêndio já muito conhecido que se chama marido.
—
Não, senhora, não confesso; calo‑me. Não devo expor à sua zombaria a vida
intima do amigo que mais prezo
— Esta reflexão, devia tê‑la feito em principio,
doutor. Depois de haver‑me aguçado a curiosidade, está na obrigação de
satisfazê‑la, e é o mais prudente. porque o seu silencio compromete o seu amigo.
— Em quê?
— Dá‑me o desejo de fazer acerca dele, e acerca dessa
vida intima que não pode ser profanada, as mais extravagantes suposições.
— Esta razão me decide
— A outra devia ter a preferência, por fineza ao
menos.
— Qual outra?
— A de duvidar da minha discrição.
— Perdão; eu a ofenderia se acreditasse nela. Seria
suspeitar de seus dezoito anos, e fazer brancos ou
grisalhos tão belos cabelos louros. — Entretanto há pouco pedia reserva aos
meus belos cabelos louros, observou Amália com um gesto encantador
—
Sem dúvida. A reserva que eu lhe pedia era a de contar a história tão enfeitada
que já não fosse a mesma referida por mim.
—
Terei esse cuidado; e até me incumbo de ilustrá‑la com retratos. Mas antes de
tudo preciso conhecê‑la.
—
Então quer ouvir?
—
E dispenso o prólogo.
—
Voltando da Europa, há três meses, passei os primeiros dias em casa de Carlos,
que me esperava e foi buscar‑me a bordo. Chegamos a São Clemente pela manhã; e
depois do banho clássico, nos reunimos em uma sala, que fazia parte dos
aposentos da mulher e onde esta mais assistia. Notei então que ele, algumas
vezes, distraidamente, voltava‑se para o sofá, permanecia por momentos com os
olhos fitos na almofada de veludo a que habitualmente se recostada D. Julieta.
—
E suspirava naturalmente ou enxugava a furto uma lágrima silenciosa que lhe
queimava a face? perguntou Amália com seriedade picante.
—
Não; ao contrário, soma‑se.
—
Deveras! O seu herói tem um cunho original. Estou me interessando por ele
—A
sala em que nos achávamos, e a presença de Carlos, a quem revia depois de anos
de ausência, remontavam o meu pensamento aos primeiros tempos de seu casamento,
em que tantas vezes nos reunía‑mos ali em família, ele, sua mulher e eu.
Parecia‑me ver ainda o talhe elegante de D. Julieta, que nos escutava, atenta,
enlevada na voz do marido, e dando‑nos de vez em quando, com uma observação
espirituosa, o tema da conversação E essa evocação entristeceu‑me. Entretanto
Carlos estava contente; e no seu semblante respirava a satisfação d'alma. Supus
que era o prazer da minha volta; mas não podia conciliá‑lo com as recordações
vivas que se estavam traindo nos seus gestos.
—
Essas recordações eram puramente cacoetes de viúvo.
—
Vai ver. Pouco depois o Abreu chamou‑nos para o almoço. Carlos tomou o seu
lugar de costume; eu sentei‑me defronte e notei logo que havia um talher em
frente à cadeira de honra, outrora ocupada pela dona da casa. Tínhamos pois uma
terceira pessoa; talvez alguma velha parenta de Carlos.
—
E por que não seria alguma prima moça e bonita, que viesse tentar aquele modelo
de constância? Aposto que adivinhei.
—
Não adivinhamos, nem a senhora, nem eu. O Abreu serviu‑nos e eu a convite do
dono da casa almocei com apetite de viajante. Uma coisa me causou reparo Quando
Carlos incumbia‑se de trinchar depois de fazer o prato para mim, fazia outro
que passava ao Abreu. Este em vez de advertir o amo da sua distração colocava o
prato na cabeceira. sobre o terceiro talher intacto, e o meu amigo tirava para
si nova porção; depois o criado mudava todos os três talheres.
—
Ah, percebo Um eclipse matinal da estrela.
—
Ao jantar reproduziram‑se todas estas circunstâncias que referi. A cadeira
continuou vazia, sem a menor observação do dono da casa, e o talher de estada
foi ainda servido duas ou três vezes. Cresceu porem a minha surpresa, quando na
ocasião de tomarmos café, Carlos continuando a conversa, preferiu o nome da
mulher, mas de modo que parecia indicar a sua presença.
Amália
deu uma risada.
— Não é romance, então. É Um conto
fantástico!...
—
Estou referindo fatos de vida real. A senhora dar-lhes‑a o titulo que for mais
do seu agrado.
—
Bem; vamos ao resto. Eu gosto mais deste gênero. Tem sua novidade.
—Como
lhe disse passei algum tempo na
companhia de Carlos; e do que observei depois, assim de umas revelações a custo
obtidas do Abreu, compreendi o que a principio me pareceu estranho.
—
Ou por outra, compreendeu o incompreensível.
—
Para aquele marido a mulher que ele amou estremecidamente ainda habita a casa,
que ela enchia de sua graça e de sua ternura. Ele á sente perto de si, a seu
lado, nas horas em que trocavam suas mútuas expansões, e nos lugares que ela
preferia.
—
É poético e sublime não pode negar.
—
Os aposentos particulares de D. Julieta estão da mesma forma como ela os
deixou. Não há ali a menor mudança; os mesmos trastes os mesmos objetos, e cada
um como ela os colocara. Ninguém a i penetra senão Carlos e o Abreu. Esse
criado velho adorava a menina, que ele trouxe nos braços desde o dia de seu
nascimento. Também para ele, a dona da casa ainda vive, e governa o interior.
—
Temos, pois, aqui na vizinhança Um hospital de doidos! atalhou Amália.
—Não
me entendeu.
—
Ora, seriamente, doutor, o Sr. comprometeu‑se a si e ao seu sexo. Obrigou‑se a
apresentar um modelo de fidelidade conjugal e só o pode encontrar como
enfermidade. Confesse: a constância de seu amigo é apenas uma mania, e o Sr.
não foi sincero quando, há pouco, pretendeu convencer ao Borges.
—Tão
sincero como agora. Carlos não tem o menor eclipse na sua razão calma e forte.
—
Mas como se chama essa alucinação?
—
É uma superstição a que estão sujeitos todos os que vivem pelo espírito.
—
Não sabia.
—Só
não as têm os materialistas, aqueles para quem Deus é um absurdo, a pátria e a
família uma comandita; gente que reduz a inteligência a um pouco de fósforo, e
a virtude a uma convenção. Esses vivem fisicamente; são corpos que se
transformam. Nós, porém, que nos remontamos à nossa origem divina, todos temos
nossas abusões.
—
Eu não as tenho.
—
Tem, afirmo‑lhe. Mas as suas abusões são risonhas e brilhantes; chamam‑se
esperanças. As suas orações também... Quantas vezes não acreditou a senhora,
que Deus, o criador do infinito, comovido por sua prece, alterava as leis do
universo para enxugar‑lhe uma lágrima, ou dar‑lhe um sorriso? O que é isto
senão uma superstição?
—
Bem diversa da que tem seu amigo.
—
A senhora nunca perdeu uma pessoa a quem amasse. Aqueles que já sofreram esse
golpe, quando visitam o túmulo que encerra as cinzas do ente querido,
acreditaram que ali está alguma coisa deles, a sua sombra, a sua alma quando
ali não há senão pó P o mesmo que acontece a Carlos, com Uma diferença: nos
outros são os vestígios materiais, é o despojo mortal, que produz aquele
efeito; nele é o espírito Unicamente. O que ele sente, o que vê, é a alma da
mulher.
—
Chega a vê‑la? disse Amália cuja ironia nada perdoava.
—
Com os olhos d'alma. O como nada é e nada era para ele. Desde o momento em que
D. Julieta morreu, ele a abandonou como um objeto indiferente, e não teve o
menor desejo de vê‑la. Isto observei eu.
—
Em todo caso, doutor, para fazer‑lhe a vontade, convenho em que seu amigo será
um homem de muito juízo, mas não aqui neste mundo; no da lua talvez.
— Devo dizer‑lhe que a principio também inquietou‑‑me aquele
estado; busquei um pretexto para tocar nesse ponto delicado. Carlos compreendeu‑me
logo e respondeu com franqueza: "É verdade, há ocasiões em que sinto
Julieta perto de mim, e em que vivo com ela como outrora. E a sua alma que me
acompanha ou é a minha lembrança que a tem sempre viva e presente ao meu
espírito? Seja o que for, isso me consola e me restitui a felicidade que perdi.
Que necessidade tenho eu de investigar este mistério ou dissipar esta ilusão?
Não há maior mistério e maior ilusão do que a vida; e nos vivemos sem conhecer,
nem a nossa origem, nem a realidade de nossa existência". Eis as palavras
que ele me disse, e com a maior simplicidade e placidez de animo. A razão e a
ciência não teriam outra linguagem; e quer a senhora que eu qualifique de
CAPÍTULO 6
No
dia seguinte à partida, pelo fim da tarde, a família Veiga achava‑se reunida
como de costume na varanda, que ficava à esquerda, no centro do edifício.
Tinham‑se
levantado da mesa de jantar e tomavam café gozando da fresca.
D.
Felícia conversava com o marido acerca do Dr. Henrique Teixeira. Tinha ela
notado o interesse e atenção que a filha mostrara ao médico, a quem vira na
véspera pela primeira vez, assim como a rápida intimidade que se estabelecera
entre ambos.
Talvez
que esse impulso da moça tão volúvel e caprichosa sempre com os outros, e ainda
mais com os seus apaixonados, fosse o indicio de uma inclinação nascente. O Sr
Veiga acolhia pressuroso essa esperança, felicitando‑se com a mulher pela
realização do seu mais ardente desejo e, como homem positivo, pensava já nos
meios práticos de efetuar o negócio:
—Amanhã
mesmo vou tirar informações, disse ele, e acrescentou logo: por cautela! Mas
estou convencido de que hão de ser das melhores. Pareceu‑me homem sério.
Enquanto
os pais, à meia voz, se ocupavam do seu futuro, Amália percorria a varanda,
repetindo de memória, samezzo, a sua parte do dueto, cantado na véspera.
Avivava assim a recordação dos aplausos que a tinham saudado nos trechos mais
lindos; e ao mesmo tempo apreciava severamente a sua execução, para corrigi‑la
e dar‑lhe maior realce.
Aproximava‑se
às vezes do balaústre onde colocara a taça de porcelana e molhava no café já
frio os lábios, que ela sugava depois com um gesto gracioso para continuar os
seus exercícios de vocalização.
Em
uma dessas ocasiões seus olhos caíram sobre a casa vizinha, que muitas outras
vezes lhe tinha da mesma forma interceptado a vista, sem que excitasse o menor
reparo de sua parte. Era um edifício como qualquer de tantos que povoavam a rua
por todos os lados.
Nesse
momento, porem, seu espírito recebeu uma expressão mais definida. Lembrou‑se de
que era aquela a habitação desse Carlos, de quem na véspera lhe falara com
tanta amizade e calor o Henrique Teixeira.
Todas as particularidades de sua conversação com o médico com acudiram à mente. Esquecendo
o dueto, repassou de memória as que
ouvira acerca do viúvo e então, como já não estava dominada do sestro de
motejar e meter a ridículo tudo quanto era sentimental, compenetrou‑se mais das
observações do doutor e dos fatos por ele referidos.
Quando
absorta nestes pensamentos olhava o edifício meio oculto pelos bambus e
avermelhado pelo arrebol, viu Hermano que passava entre as árvores, e
aproximava‑se do banco favorito.
A
moça, disfarçando a sua curiosidade, recolheu o airoso busto na penumbra da
coluna, para observar o solitário passeador, que se sentara a pequena distancia
do muro da chácara, em lugar onde ela o via perfeitamente por entre a folhagem.
Impressionada
pela narração de Teixeira, examinou a fisionomia, e notou que ela não tinha
nesse momento a expressão de recolhimento e abstração própria do homem que está
só. O seu olhar não era de contemplação; animava‑o o raio do espírito em
comunicação com outro espírito não era o olhar que vê, mas o olhar que fala,
que transmite a impressão em vez de recebê‑la.
Uma
vez Hermano ergueu‑se; foi até a platibanda, colheu uma flor um lírio, e
tomando a seu lugar, conservou‑o na mão com o gesto expressivo de quem o
mostrasse a outrem sentado à sua direita.
Então
operou‑se em Amália Um fenômeno psicológico estranho para ela que vivia unicamente
no presente, porém em si mui natural e freqüente. Assim como na tela de Um
transparente as figuras assomam de repente quando as colocam a contraluz da
mesma forma na memória da moça desenharam‑se cenas da infância esquecidas por
tantos anos.
Pareceu‑lhe
que via como outrora os dois noivos sentados no mesmo banco à sombra dos
bambus. Uma tarde Hermano tinha colhido a mais linda flor do lírio e a
apresentara à mulher dizendo‑lhe:
—
É a tua imagem.
—
Então guarda‑a, respondeu a mulher; e inclinando‑se sobre a flor, bafejou‑a com
o hálito. Dei‑lhe Um pouco de minha alma.
A
travessa menina debruçada sobre o moro ouvira esse rápido diálogo, de cujas
palavras agora se recordava como se as estivesse escutando. Hermano tinha
guardado a flor, que ele aspirava com delícia, sorrindo à mulher.
Lá
estava ele ainda, com a flor, o gesto e o sorriso que ela vira cinco anos
antes; só faltava a noiva. Então Amália revolveu debalde a memória na esperança
de achar aquela imagem que se esvanecera tentou recompor com os traços
fugitivos de suas recordações aquela meiga figura, mas não o conseguiu.
No
vislumbre de suas reminiscências aparecia Um vulto formoso e elegante; mas ela
não podia distinguir‑lhe as feições; e isso a contrariava. Sentia Um desejo de
rever aquela moça, de conhecê‑la agora que era moça também. Talvez viessem a
ser amigas; com certeza o seriam; e que prazer não lhe daria a sua intimidade!
Estas
vagas aspirações, Amália não as cogitou; despontavam em seu espírito de envolta
com as recordações do passado, e apagavam‑se logo.
Amália
tinha muitas vezes lido em romances Uns lirismos de amor semelhantes àquele
bafejo da flor; e sabia que nos bailes e na vida real eles eram freqüentemente
copiados e até exagerados pelos noivos.
Todo
esse formulário poético do namoro, ela o achava sumamente ridículo; e sempre
que o apanhava em flagrante, ohavia aplaudido com uma risada gostosa, como um
lance de comédia.
Entretanto agora que o terno sentimento pela mulher
devia parecer‑lhe ainda mais extravagante, pela circunstância de não ser já
senão uma mímica, bem longe de excitar‑lhe o riso, ao contrário a tinha
comovido.
Assim
devia ser. O gesto de Hermano por mais excêntrico e singular que fosse,
aparecia‑lhe através da morte cuja sombra o envolvia. Não era uma fineza banal
de namorados, nem uma afetação vã. Havia naquele diálogo mudo a comunicação de
duas almas cujo elo o túmulo não tinha partido.
Quando
o viúvo afastou‑se na direção da casa, Amália sorriu‑se; mas de si, de uma
idéia de menina
Lembrou
se do desejo que tivera outrora de achar um noivo como aquele, que a adorasse,
como ele adorava a mulher, e lhe desse muitas jóias, muitas fitas, muitas
galantarias.
Tinham
corrido os anos. Ela ficara moça e era bonita; alguns diziam muito bonita, e
ela concordava com estes. Seria mais bonita do que a outra, que ela invejava?
Não sabia, e tinha Uma certa curiosidade de verificar esta circunstância.
Não
lhe faltavam noivos; ela poderia ter escolhido um entre muitos tão elegantes
como esse, talvez mais sedutores. Entretanto os desdenhara a todos; e não
sentia o menor entusiasmo pelo casamento.
De
que provinha isto?
Nessa
noite Amália foi com a família ao teatro. Enquanto se vestia e durante o
espetáculo, seu espírito algumas vezes se desprendia das impressões do momento
para insistir naquela interrogação.
Até
então nunca se preocupava com o motivo de sua isenção. Era uma questão de
gosto. Uns apreciam a música mais do que a pintura; há quem não pode suportar o
burburinho da cidade, entretanto que outros detestam a monotonia campestre.
Ela
preferia a vida de solteira, por ser mais livre, mais divertida e mais
tranqüila.
Ao
recolher‑se, avistando a casa vizinha, voltaram‑lhe de tropel todos os
pensamentos, que a cena da tarde lhe tinha sugerido. Mas apenas esvoaçaram um
instante pela fantasia, e submergiram‑se no repouso de um sono forte e calmo, o
sono da saúde e da mocidade.
Pela
manhã, ao acordar, dissipado o primeiro torpor que deixa a longa síncope da
vida moral, a moça encontrou em seu espírito a explicação com que neo atinava
na véspera.
Até
então não conhecia senão a aparência do casamento, essa face material, que se
vê de fora, e compõe a sua fisionomia social. Agora compreendia que essa união
era mais do que um modo de vida; mais do que um hábito e uma conveniência. Era,
devia ser, um destino.
Aquele
marido, neo só fiel à memória de sua mulher mas unido a ela como no primeiro
dia de seu amor; essa afeição alheia ao mundo e indiferente às vicissitudes da
vida, fora uma revelação para Amália.
Entretanto
esta revolução, que subitamente se tinha operado em suas idéias, produziu
efeito oposto ao que talvez se devesse esperar. Bem longe de conciliá‑!a com o
casamento, ao contrário, acabou de afastá‑la.
Se
até então ela evitava essa ligação como um transtorno à sua mocidade e uma
contrariedade à sua índole, atualmente a considerava como um perigo, e um
grande perigo.
Unir‑se
a outro homem, que não fosse o marido esperado, não seria falhar a seu destino.
sacrificar a existência inteira e condenar‑se ao eterno suplício de um
cativeiro cheio de humilhações?
CAPÍTULO 7
Desde
aquele dia, que se pode chamar de sua conversão, Amália ocupou‑se com a casa vizinha,
que dantes não lhe merecia a menor atenção.
Agradava‑lhe
a chácara, o edifício, as árvores. Achava‑lhes alguma coisa de particular,
embora não tivessem realmente de notável senão a solidão e o silêncio que os
cercavam.
Acompanhava
os movimentos da habitação Ligava aos mais casuais e ordinários alguma
significação. Uma janela que se abria, um rumor qualquer, eram como o gesto ou
a palavra do edifício, que para ela tinha uma vida, uma história, uma
individualidade.
Por
Hermano, Amália sentia um indefinível respeito. Parecia‑lhe que via nele pela
primeira vez um homem. bem diverso da gente que povoava as salas e ruas. Nesse
habitava uma alma: e era uma alma superior ao mundo, que tinha o seu mundo em
si.
Ela,
que dias antes ria do espiritualismo de Henrique Teixeira, a propósito do
amigo, enlevou‑se depois numa ideologia ainda mais abstrata; e achava simples,
naturais, evidentes, os fatos que sua imaginação fantasiava.
Julgara
a princípio uma demência, essa ilusão em que vivia Hermano. Entretanto que
exagerava agora aquele fenômeno moral, e atribula uma intenção misteriosa aos
menores incidentes.
Por
quem Amália, porém, mais se interessava era pela pessoa que já não existia:
pela mulher que Hermano amava. Ela a considerava já como uma irmã sua evocava a
sua imagem, falava‑lhe e ficava contente de vê‑la feliz por ter inspirado ao
marido aquele amor indelével.
Avivava‑se‑lhe
o pesar de não a ter conhecido e de não lembrar‑se de suas feições Desejava
tanto contemplar‑lhe a beleza, ainda que fosse de memória! Hermano possuía
necessariamente um retrato fiel de sua Julieta. Que não daria ela para vê‑lo?
Essa
mulher que havia merecido um amor tão puro completamente desprendido dos
interesses e misérias sociais; que expressão, que encanto especial, que magia
celeste possuía a sua beleza?
Às
vezes Amália tinha uma vaga reminiscência da alvura deslumbrante de sua tez; do
brilho sereno dos olhos; da suave inflexão do talhe.
E
insensivelmente comparava‑se a esse modelo; e sorria‑se com desvanecimento,
porque achava em si uns traços de semelhança
A
sociedade começou a mostrar‑se à moça por um novo aspecto.
As
futilidades brilhantes que dantes a alegravam e que ela chamava as flores da
vida, tornaram‑se para seu espírito mais calmo, flores do vento, rosas efêmeras
e sem perfumes; e foi assim que a pouco e pouco se isolou do mundo. Sentia um
tédio indefinível pelos divertimentos, e só achava prazer na solidão.
O
Sr. Veiga havia colhido acerca de Henrique Teixeira boas informações. Era médico
de talento e podia contar com um brilhante futuro, se não lhe faltasse a
qualidade preciosa de saber‑se apresentar.
Essa
qualidade não é tão comum como se pensa; o que se encontra a cada passo e em
todas as profissões é o abuso dela, o vicio muito conhecido com o nome de
charlatanismo. Não se trata, porem. desse grosseiro arremedo, que está ao
alcance de qualquer sujeito desembaraçado, ainda mesmo ignorante e medíocre.
Os
processos e fórmulas do charlatanismo já se aperfeiçoaram de tal modo, que os
adeptos não carecem mais de gênio inventivo; tudo está feito, desde o anúncio
ate à celebridade artificial.
Aquele que precisa do petrecho completo, médico,
advogado ou artista, não tem mais do que pagar.
O
que faltava a Henrique Teixeira não era pois essa fancaria a que o seu caráter
não se prestava; era sim a verdadeira e fina arte social que ensina o homem a
pôr em relevo o seu merecimento e atenuar os seus defeitos, sem hipocrisia,
unicamente pela simples reserva e discrição
Os
painéis dos melhores mestres carecem de uma posição favorável para mostrarem
todas as suas belezas; colocados contra a luz ou de esguelha desmerecem
completamente e confundem‑se com qualquer pintura. Assim são os homens na
sociedade A atitude é tudo: quase sempre decide de uma carreira.
O
Sr. Veiga era homem prático e muito conhecedor do seu mundo. Apreciou pois no
justo valor a observação do amigo que lhe prestava esta informação; mas também
sabia ele que a riqueza supre perfeitamente na sociedade a virtude, o talento,
o saber, e até a afeição.
O
marido de Amália com duzentos contos de réis de dote, e o dobro em perspectiva,
não precisava de apresentar‑se; estava apresentado pela fortuna. Tinha um
pedestal; todos o haviam de ver. Nenhuma necessidade teria ele de insinuar‑se
de agradar por suas maneiras quando podia impor‑se. Que melhor anúncio e mais
pomposo elogio do que um lindo carro tirado por formosa parelha de cavalos do
Cabo, a percorrer as ruas da cidade e a excitar a atenção pública?
Em
conclusão, o Sr. Veiga calculou que o Dr. Henrique Teixeira lhe convinha para
genro especialmente pela circunstância mui importante de mostrar Amália por ele
uma inclinação decidida.
Depois
da noite da apresentação o médico fizera à família a visita de rigor; e nessa
ocasião ainda Amália o acolhera com a maior afabilidade, insistindo para que
não faltasse às partidas. Além disso D. Felícia, que se incumbira de sondar as
disposições da filha não teve necessidade de usar de sua diplomacia. A moça,
espontaneamente e sem reticências, manifestou a impressão agradável que o
médico deixara em seu animo.
À
vista disto não restava senão entabular a negociação que o Sr. Veiga queria
terminar logo e de pronto com a decisão que punha em suas transações. D.
Felícia, porém, foi de opinião que se deixasse as coisas seguirem o seu curso
natural, facilitando‑se apenas o seu casamento.
Este
último alvitre prevaleceu. O Sr. Veiga pagou a visita ao Dr. Henrique Teixeira,
e convidou‑o para o jantar de família, combinação lembrada pela mulher para
introduzir na intimidade da casa o suposto pretendente que não era realmente
senão um pretendido.
O
doutor foi assíduo às partidas Amália continuou a distingui‑lo com uma atenção
especial, deleitando‑se na sua conversa. Falavam acerca de Hermano; a moça
interrogava amiude e ouvia com avidez.
Não
precisou o médico de grande perspicácia para conhecer que esse interesse tão
vivo da moça denunciava uma afeição nascente, mas profunda. Hermano ainda
ignorava naturalmente; mas quando viesse a conhecê‑la poderia ele partilhá‑la?
Henrique
era um tanto fisiologista. Ele acreditava que a natureza amante e apaixonada de
Hermano carecia de uma forte expressão de afeto; e por isso revivia Julieta,
para adorá‑la. Desde, porém, que outra mulher o impressionasse, ele
transportaria aquela adoração para o novo ídolo e continuaria neste o mesmo
amor romanesco.
E
que mulher estava mais nas condições de causar essa impressão viva do que
Amália, cuja beleza luminosa e esplêndida raiava dentro d alma como uma aurora
de amor?
O
médico afagava esta esperança. Ele compreendia a necessidade de subtrair o
amigo à constante preocupação que lhe consumia parte da vida. Esse estado em
todo caso não era natural; cumpria que cessasse. Para isso o primeiro passo era
aproximar Hermano da mulher, que c podia salvar.
Entretanto,
parecendo a D. Felícia muito lenta a marcha dos acontecimentos, consultá‑lo resolveu ela provocar uma explicação. Mandou
chamar o médico para consultá‑lo sobre a saúde da filha, cuja mudança já a
inquietava.
Expôs
o desejo que ela e o marido tinham de ver Amália casada Descreveu o tipo do
noivo que preferiam; e apesar de sua modéstia Teixeira foi obrigado a rever‑se
naquele retrato físico e moral, como em um espelho do melhor aço. Finalmente
rematou dando ela uma consulta
matrimonial ao médico, em vez da consulta profissional que devia pedir a
este.
—
Amália gosta de alguém, doutor. Tenho a certeza.
—
E natural D. Felícia, e até muito provável.
—
E o Sr. sabe quem é?
—
Não devia entrar em assunto tão delicado; mas a sua confiança minha senhora, a
estima que consagro a toda a sua família, e o deseje de concorrer para a
felicidade de duas pessoas que tanto merecem impõe‑me esse dever.
Henrique
revelou o segredo de Amália. D. Felícia caiu das nuvens Não podia crer. Apenas
retirou‑se o médico, ela dirigiu‑se ao aposente da filha.
Amália,
de pé junto à janela, com a fronte apoiada na aba da porta, tinha os olhos
presos na casa vizinha; e tão absorta nessa observação, que a mãe aproximou‑se
e ficou muito tempo a fitá‑la, sem que ela percebesse
D
Felícia não duvidava mais. Teixeira tinha razão. Amália amava Hermano e era um
amor veemente que se lia em seu formoso sem blante como em uma página aberta.
—
Queres casar com ele? perguntou a senhora afetuosamente.
Amália
estremecera a essa voz. Com as faces inflamadas pelo pejo e os olhos em pranto,
atirou‑se nos braços da mãe e escondeu o rosto no seio dela.
D.
Felícia acariciou‑a com ternura e repetiu a pergunta que a moça escutara da
primeira vez
—
Casar?... Com quem?... interrogou ela atônita.
—
Com ele! com o Hermano.
Uma
palavra prorrompeu do seio da moca, como a explosão d sua alma.
—
Nunca!
E
desprendeu‑se dos braços da mãe, com uma violenta expressa de pavor
Amália passava pelo mesmo
espanto que teria se sua mãe lhe e acabasse
de propor para marido um homem casado.
CAPÍTULO 8
A
primeira abertura de D. Felícia com Henrique Teixeira estabeleceu entre ambos uma confidencia constante sobre o
delicado assunto do casamento de Amália.
Ambos
empenhavam‑se na realização desse projeto do qual esperava cada um a ventura da pessoa que lhe era tão
cara. Se a graça e os dotes da moça tinham cativado a simpatia do doutor, que
já a estimava como outra Julieta também D. Felícia seduzida pelo entusiasmo do
amigo, queria a Hermano como a um filho e apreciava o seu caráter leal e
generoso.
Logo
no dia seguinte, aflita com o modo por que Amália recebera a idéia do
casamento, e o terror de que se possuira, a mãe comunicara ao médico esse fato
tanto mais inexplicável, quanto a filha traia nos seus menores gestos um amor
irresistível por Hermano.
Henrique
Teixeira compreendeu logo o sentimento de Amália. Essa moça, outrora tão
positiva, pairava agora no mundo da fantasia. Desde que Julieta vivia para o
mando, e o acompanhava ainda e sempre, esse marido não era para a moca um
viúvo, e o seu casamento com outra mulher seria um crime um adultério.
Não
pareceu prudente ao médico explicar a D. Felícia o que influira realmente no
animo da filha, e evitou de tocar em qualquer particularidade da viuvez do
amigo para não assustar a senhora. Atribuiu o espanto e emoção da moça à
repugnância que ela mostrara sempre pelo casamento, e de que anteriormente fora
informado.
D.
Felícia aceitou esta razão, porque não descobria outra; e combinou com Teixeira
os meios de destruir aquela prevenção Deviam começar por estabelecer relações
entre os dois apaixonados. A senhora os chamava assim, na convicção em que
estava de que Hermano não podia deixar de ter por Amália um amor ainda mais
veemente do que soubera inspirar à filha.
O
doutor incumbiu‑se de apresentar Hermano em casa do Sr. Veiga. Essa tarefa não
era tão fácil como parecia: ele tinha de lutar com uma das regras invariáveis a
que o amigo submetera a sua existência, desde a viuvez.
Quando
não se achava nos seus dias negros, dominado pela obsessão que era talvez uma
recaida do letargo causado pela morte da mulher, Hermano freqüentava a
sociedade, e concorria aos divertimentos como no seu tempo de casado.
Encontrando nos bailes alguma amiga de Julieta dançava com ela e a festejava.
Não tinha os sestros do viúvo. Não se enternecia, nem suspirava falando do
golpe que sofrera; ao contrário mostrava um doce regozijo ao avivar recordações
de sua felicidade.
Mas
também repelia toda inovação.
A
sua vida parara no momento em que Julieta morrera, deixando‑o o, e portanto
mutilando‑lhe o ser. O que ele fazia depois disso não era mais viver; e sim
reviver o passado, remontar o curso dessa existência dupla, que absorvera sua
individualidade.
Não
tinha relações nem amizades que neo fossem daquele tempo. Se o acaso o punha em
contato com outras pessoas, tratava‑as sempre como estranhas, e não guardava
lembrança desses nomes nem dessas fisionomias desconhecidas.
Não
visitava família que não tivesse freqüentado com a mulher.
Henrique
portanto contava que o primeiro impulso do amigo seria recusa formal de
acompanhá‑lo à casa do Sr. Veiga; e cogitava pretextos para induzi‑lo e demover‑se
uma vez da sua inabalável resolução.
Em
suas conversas acerca de Hermano, Amália tinha pedido ao doutor que lhe fizesse
o retrato de Julieta; e nessa ocasião lhe dissera que outrora, bem menina, a
tinha visto muitas vezes, mas não se podia lembrar da fisionomia.
Henrique
também não se lembrava senão dos cabelos negros e da alvura da tez; do mais não
reparara ele senão na graça que envolvia e luminava toda a pessoa de Julieta.
De sorte que Amália nada colheu além do que sabia.
Sobre
estas circunstâncias que a moça lhe referira de sua meninice, o médico propôs‑se
a bordar um conto que despertasse a curiosidade de Hermano. Falou‑lhe da
vizinha que se lembrava muito de D. Julieta e imaginou entre ambas uma
semelhança, que não o podia comprometer na sua opinião. Amália era uma beleza deslumbrante
que ofuscava a outra.
Hermano,
não mostrou o menor desejo de conhecer a moca: t quando Teixeira o convidou
para acompanhá‑lo à casa do Sr. Veiga ele respondeu simplesmente:
—
Não o conheço.
—
Mas ele te visitou quando mudou‑se para tua vizinhança Disse‑me a senhora.
—
Não sei.
O
doutor compreendeu que só havia um meio de arrancar o amigo àquela vida
abstrata. era perturbar o seu recolhimento, quebrar os seu hábitos, agitar‑lhe
o espírito. Antes de fazê‑lo hesitou. Tinha ele certeza de dar felicidade a
Hermano? Não seria cruel dissipar‑lhe a doce ilusão em que vivia para lançá‑lo
em uma triste realidade?
Era
caso de refletir.
O
pavor que produzira em Amália a idéia de casar‑se com Hermano, deixou em seu
espírito uma impressão profunda, que só mais tarde se foi desvanecendo.
A
chácara vizinha excitava nela um sentimento de repulsão; desviava os olhos daquela direção; passava os dias
fora para fugir a essa vista que a incomodava. Foi para o Andaraí estar uma
semana com tia.
A
ausência acalmou a sua agitação. Voltando a casa, D. Felícia acabou de
tranqüiliza‑la. Disse‑lhe que tivera aquela idéia, por desconfiar que Hermano
lhe agradava, mas desde que ela rejeitava o partido não devia pensar mais
nisso; pois nunca se casaria senão de sua livro vontade e com um homem que
escolhesse.
—
Mas ele, mamãe, soube de seu desejo? perguntou Amália inquieta.
—
Não; foi só lembrança minha. Ele não deu nenhum passo.
—
Se nem me conhece!
Esta
conversa dissipou o susto da moça. Aquele interesse que ele havia tomado pela
constância do viúvo, tomou‑se inocente como dantes. Ela podia sem receio, e sem
vexame, abandonar‑se de novo ao impulsos desse capricho.
Voltou
pois à contemplação e devaneio, em que se esquecia a observar os movimentos da habitação vizinha.
Uma
tarde, Hermano não veio como de costume sentar‑se no banco dos bambus. Ela
impacientou‑se com a demora; lastimou Julieta por aquela primeira inconstância;
e afigurou‑se‑lhe ver a esposa desdenhada suspirando na sua tristeza e abandono.
Pouco
tempo depois Hermano saia à chácara acompanhado de Teixeira, e dirigiu‑se para
o sítio habitual. Advertindo, porém, que na estava só arredou‑se e foi sentar‑se
longe com o amigo.
Amália
adivinhou então a causa da ausência que a afligira. Perdôo a Hermano em nome de
Julieta; condoeu‑se da contrariedade que ei devia sofrer naquele momento; e
irritou‑se contra o Teixeira que vier disputar o amigo ao amor da mulher e
obrigá‑lo a parecer ingrato.
À
noite fechada Amália via através da folhagem brilhar a luz do gás nas janelas
que ela sabia serem as dos antigos aposentos de Julieta; nessa ocasião
murmurava:
—
Está junto dela
Recordava‑se
então da vez em que os vira ali outrora. dos beijo que Hermano dera na mulher,
e do rubor da noiva quando percebe que alguém os espiava, e que na de sua
ternura. momentos repreendia‑se por aquela travessura de criança, de que se
envergonhava.
Henrique
Teixeira lhe dissera que esses aposentos ainda estavam como Julieta os deixara.
Que vontade não tinha de os ver de novo, e agora que podia melhor apreciá‑los!
Ás vezes dirigia‑se para o terraço donde antigamente espreitava os noivos. Mas
a delicadeza de seus sentimentos a retinha. Repugnava‑lhe espiar a casa alheia,
e abaixar‑se a essa curiosidade leviana.
Notou,
porém, que as rótulas estavam constantemente fechadas; portanto ela podia sem
indiscrição aproximar‑se dessas janelas. Para quê? Para estar mais perto, para
ter uma esperança vaga e ilusória de ver aquilo que fugia de olhar
Em
uma noite cálida e abafada, a moça recostada à leiva de grama, fatigava, como
de costume, os seus belos olhos em distinguir umas sombras fugitivas e confusas
que se agitavam por dentro das venezianas.
As
rótulas estavam apenas cerradas, o que ela notou pela estreita faixa de luz que
indicava o interstício das duas abas não ajustadas. A principio teve escrúpulo;
mas como era impossível enxergar por aquela fresta deixou‑se ficar.
Instantes
depois a moça caiu de bruços sobre o respaldo de grama, sufocando nos lábios o
grito doloroso que lhe estalara no seio.
CAPÍTULO 9
Soprava
a viração da noite.
O
primeiro luto. cortando o ambiente cálido e estagnado e derramando no ar uma
onda de frescura, rugitou pela folhagem das mangueiras.
Com
a rajada, as rótulas se tinham afastado de modo a mostrar no quadro da janela o
interior do aposento.
No
centro havia uma mesa de charão com um vaso de rosas, colhidas naquela tarde.
Amália vira quando Hermano as cortara da haste e pensou então que eram uma
oferenda do mando à esposa querida. Naturalmente iam ornar o seu toucador.
Junto
do vaso estava aberta uma caixa de carvalho com preparos e utensílios de flores
artificiais; e na beira da mesa uma peanhazinha de bronze que mantinha direita
na sua haste de arame uma rosa de pano ainda por acabar.
Hermano
sentado ao lado com um livro aberto lia a meia voz; e embora o sussurro de suas
palavras se perdesse nos rumores da noite, podia Amália mesmo de longe ver‑lhe
o movimento dos lábios.
Mas
não foi nada disto o que feriu a alma da moça, quando a veneziana aberta
patenteou‑lhe aquela cena.
Em
face de Hermano e também sentada como ele Amália viu. cheia de espanto, uma
mulher. Era moça e de rara formosura. Na posição que tomara, o seu talhe
moldado por um vestido simples e justo, de azul à princesa, desenvouvia‑se com
um garbo indefinível.
A
madeixa de cabelos negros sombreava o níveo fulgor do semblante, cujo delicado
perfil pareceu a Amália ser talhado em um jaspe macio e diáfano, tão suave era
o tom dessa carnação.
Descansava
sobre a mesa um dos braços, cuja perfeição estética aparecia no esvazado da
manga, e tinha a fronte ao de leve reclinada para a espádua, como uma flor que
se realça para haurir a luz e os orvalhos do céu.
Amália compreendeu essa expressão de êxtase.
Pensou
que a moça interrompera o seu trabalho de florista para embeber‑se no encanto
de ouvir as palavras de Hermano, o qual também abaixara o livro para contemplá‑la
e encher‑se de sua beleza.
Do
primeiro relance Amália não viu senão naquele aposento, que pertencia a
Julieta: não sentiu senão o golpe de tão indigna profanação; e foi este
sentimento que lhe despedaçou a alma em um grito de dor, e atirou‑a convulsa e
fulminada sobre o cômoro de grama.
A
cólera a reanimou. Ergueu‑se e foi então que viu tudo Seu olhar repassado de
ódio correu todas as linhas daquela estátua harmoniosa como o faria o severo
buril de um escultor; e não achou uma aspereza. um lisim. Ela poderia notar
naquela fisionomia a fixidez de expressão, que a amortecia; mas era precisamente
essa elação do amor, a maior sedução da rival de Julieta, a sua beleza ideal e
celeste.
Um
criado velho, o Abreu, entrara no aposento. Arranjou os objetos que estavam
sobre a mesa; colocou ali uma salva com serviço de chá para duas pessoas; e reparando
nas rótulas abertas pelo vento, fechou‑as com o trinco.
Amália
não viu mais nada senão a luz coada entre as lâminas das venezianas.
Não
se imagina a indignação que sublevou sua alma, quando refletiu naquele
acontecimento.
Se
um homem amado por ela, depois de ter‑lhe jurado fidelidade, a enganasse
vilmente, não o puniria com o desprezo, que tinha por Hermano nesse momento.
Era
uma traição torpe e infame a que havia cometido esse marido. Não lhe bastara
esquecer a mulher, faltar ao seu juramento Fez mais: insultou a sua memória,
cobrindo com o véu de uma constância exemplar outro amor, que ele próprio se
envergonhava de mostrar ao mundo.
Amália
identificava‑se com a esposa traída; supunha Julieta rediviva em si e erguendo‑se
implacável para castigar o pérfido marido.
Mas
como? Morrendo outra vez; porem morrendo eternamente para ele; rompendo a
cadeia que os unia, e abandonando‑o a essa infeliz, como um sobejo da traição.
Nos
dias que seguiram esta cena, Amália foi má. Sua alma se tinha saturado de fel;
os sentimentos afetuosos eram recalcados por um despeito violento.
Anunciara‑se
a estréia de uma companhia italiana no Teatro Lírico.
Amália
assistiu à representação. Queria vingar Julieta cobrindo de desprezo a todos os
homens, especialmente os homens que fingiam o amor. Desejava sobretudo
encontrar Henrique Teixeira para exprobrar‑lhe a indignidade do amigo.
Os
cantores eram medíocres fossem embora insignes Amália não lhes prestaria
atenção naquela noite. Abriu o binóculo, e correu‑o pelos camarotes, não para
apreciar os trajes como costumava, mas para os criticar e às donas também; para
dar alvo a seu pungente sarcasmo.
Em
um camarote fronteiro descobriu Hermano e perturbou‑se.
Que
vinha fazer aquele homem ao espetáculo? Antes, devia este fato surpreendê‑la;
agora não; era tão natural!
A
mulher que em uma das noites passadas ela vira no aposento da esposa traída a
rival de Julieta, com certeza estava no teatro; e o indigno amante só viera
para acompanhá‑la, e gozar da admiração produzida por sua beleza.
Amália
notou que Hermano, apesar de estar só no camarote, deixara o lugar fronteiro à
cena, e sentara‑se no outro voltado para o fundo da sala. Parecia escutar
atentamente a ópera; mas olhava com insistência para a segunda ordem.
Acompanhando
a direção desse olhar, Amália fitou um camarote diagonal ao seu. Havia ali uma
mulher vestida com muito luxo.
A
sala de gorgorão verde com rendas finíssimas atufava‑se por entre as grades.
Estava
de costas. A moca não podia enxergar‑lhe o rosto, que se retraia com o
movimento do corpo ao voltar‑se. Descobria, porem. uma madeixa de cabelos
negros; e descansando sobre o acolchoado de veludo escarlate um braço alvo e
torneado mesmo molde do outro, que vira na mesa de charão.
Esta
observação irritou a indignação de Amália. Antes de terminar o espetáculo ela
deu‑se por incomodada e realmente estava. Quando já se retiravam, apareceu
Henrique Teixeira; a moça não lhe deu atenção. A vontade que tinha de lançar‑lhe
em rosto a traição do amigo cedera a outro sentimento , ao pudor Agora tinha
vergonha de conhecer essa intriga vil e de ocupar‑se com ela.
Quando
se esmerada na cantoria, Amália tomara o hábito de recordar os trechos de ópera
que ouvia no teatro. Assim fixava as suas observações de véspera; imitava as
belezas, e corrigia o seu método.
Por
isso ao acordar lembrou‑se do piano já tão esquecido; e depois do almoço
dirigiu‑se à sala. Se ao recolher‑se perguntassem que ópera se tinha cantado,
ela com certeza não poderia responder Agora, porém, recordava‑se perfeitamente;
fora a Lúcia de Donizetti. A música ficara‑lhe no ouvido.
Abriu
a partitura e cantou a parte de soprano. Disse admiravelmente o delicioso
allegro da fonte; mas na grande ária da loucura excedeu‑se. Não era o delírio
da noiva escocesa que a inspirava: era o desespero de Julieta, a dor da esposa
traída.
Estava
aberta uma das janelas. e o sol entrando pela sala, chamejava nos espelhos e
cristais. A claridade impacientou Amália estava triste, e achava insuportável
essa alegria do céu que vinha importuná‑la.
Ergueu‑se
para fechar a janela, onde a esperava uma surpresa.
Hermano,
de pé, à sombra de uma árvore, escutava o canto, em profundo recolhimento. Sua
fisionomia denotava que ainda depois de ter cessado a voz, ele ouvia dentro d
alma o eco, e esperava o seu retorno.
Tinha
na mão um jornal e estava sem chapéu, como quem fora surpreendido em casa, a
meio da leitura, e viera pressuroso, não lhe importando sair de cabeça
descoberta.
Quando
Amália recobrava‑se da emoção, Hermano erguia a fronte; pela primeira vez o
olhar doce, profundo e exuberante desse homem encontrou o seu; e subjugou‑a
Ela
estremeceu como se recebesse um insulto; e arrebatadamente num assomo de
cólera, bateu a janela.
O
que ela sentia era não ser homem para nesse mesmo instante precipitar‑se do
sobrado, saltar o muro, e açoitar as faces daquele insolente.
CAPÍTULO 10
O gênio faceiro e jovial de Amália mudou
completamente. A moça tornou‑se pensativa: tinha longas horas de cisma e
melancolia, ela que dantes não sabia senão rir e brincar.
Algumas vezes já se esquivava de freqüentar a
sociedade, que então fora para ela uma necessidade Inventava pretextos para
recusar os convites: e ficava em casa solitária, distraída, vagas
contemplações.
Passava
noites inteiras, recostada à sua janela com os olhos fitos, o seio palpitante,
tão alheia de si que não ouvia a voz da mãe a chamá‑la, e tão presente aos seus
pensamentos que estremecia e sobressaltava‑se a cada instante sem causa
aparente.
Outras
vezes saía ao jardim, e vagava pelos passeios talhados na relva, a desfolhar as
flores que sua mão distraída ia colhendo, e a arrular palavras submissas que,
pela cadência da voz melodiosa pareciam trechos de poesia.
Amália
admirava outrora as estrelas como umas jóias mimosas de que Deus havia recamado
o seu manto azul ou como umas violetas do céu a luzir por entre as sombras da
noite. Era bonito; mas ela preferia um adereço de brilhantes sobre um vestido
de cetim ou uma grinalda de miósotis.
Agora
um místico sentimento a atraia para essas flores de luz , gostava de conversar
com elas. Pensava que talvez tivessem um coração irmão do seu.
Quem
sabe se não eram os anjos da guarda que velavam sobre as almas exiladas na
terra?
Ela
própria achava ridículas estas abusões, quando repassava na mente as cismas da
véspera mas isto não impedia que de novo se embalasse naquela e noutras
fantasias, em seus momentos de devaneio.
Toda
a sua pessoa ressentia‑se da revolução que lhe transformava o gênio.
Os
movimentos sempre tão vivos e cintilantes tornaram‑se frouxos e lentos. Sua
beleza já não irradiava como no tempo feliz; agora embebia‑se em uma sombra
diáfana, que velava o matiz da cútis aveludada
Ao
piano, a sua execução não perdera em correção e limpidez; mas ou tocasse ou
cantasse, havia na música, se esta era triste, uma repercussão íntima e profunda. Sentia‑se palpitar a dor nas
teclas como na voz.
De
repente, sem motivo, e sem consciência, enchiam‑se‑lhe os olhos d'áqua. As
lágrimas doutros tempos eram orvalhos para as boninas de seu gentil sorriso;
estas de agora comam lentamente e deixavam nas faces um brilho lívido.
A
família assustou‑se com esta mudança. Às perguntas inquietas da mãe, Amália
respondia que andava aborrecida; e entretanto recusava as distrações que lhe
ofereciam.
Afinal,
tendo perscrutado debalde a causa da súbita transformação da filha, D. Felícia
a atribuiu a uma cessas moléstias nervosas a que são muito sujeitas as moças
fluminenses, pela falta de educação higiênica.
Resolveu
então a família passar algum tempo fora da corte. Foram para Petrópolis.
Nos
primeiros dias, Amália recobrou a sua antiga alegria; e voltou à vida agitada e
folgazã. Os passeios de carro descoberto, as apostas a cavalo, e as partidas
campestres, reanimaram‑lhe o gosto da sociedade e a restituíram ao seu natural.
A
moça conseguiu durante alguns dias atordoar‑se e submergir as suas recordações
num turbilhão de prazeres ruidosos, mas que não lhe davam senão a alegria
artificial do momento.
Ao
cabo de alguns dias cansou A tristeza que tinha espancado à força de movimento
e agitação, voltou e mais intensa. Com esta vieram as saudades da casa de São
Clemente. A moça lembrou‑se da sua doce solidão; e desejou‑a, como nunca havia
desejado os divertimentos.
Fizeram‑lhe a vontade. Recolheram‑se à corte depois de
um mês de ausência Por diversas vezes quiseram levá‑la para a Tijuca ou para
Juiz de Fora; mas ela resistiu sempre e com energia; foi preciso ceder.
A
família então uma viagem à Europa, como único meio que lhe restava para salvar
a filha querida. Quando os pais comunicaram essa intenção à moça, ela recebeu o
anuncio com espanto; depois foi se habituando à idéia, e, em vez de a repelir,
já por fim a acolhia favoravelmente, e dizia à mãe, num ingênuo assomo de
ternura
—
Não se aflija tanto, mamãe, eu lhe prometo ficar boa com a nossa viagem à
Europa.
O
Sr. Veiga, pai de Amália, começou a dispor os seus negócios. Contava partir no
futuro mês de março, por ser já fim de ano, e não convir, na opinião dos
médicos, nem à filha nem a ele, uma transição brusca do nosso verão para o
inverno europeu.
D
Felícia depositava grandes esperanças nessa viagem; mas sua convicção era que
só o casamento podia restituir a Amália a saúde e a felicidade perdidas
Desde
que voltara de Petrópolis, Amália trazia no fundo d'alma uma esperança, que não
se animava a afagar, mas que se derramava por sua mágoa como uma gota de
bálsamo. Talvez que tudo quanto vira naquela noite não fosse mais do que um
momento de loucura, uma alucinação passageira do marido de Julieta
Hermano
seduzido por aquela mulher fatal esquecera o seu juramento; mas passada a
primeira fascinação, o remorso o tinha pungido; e ele sem dúvida repelira de si
com horror a culpada. Amália ia pois achá‑lo restituído ao amor puro e legítimo
da esposa.
Com
efeito o marido de Julieta, quando não saia e ficava em casa a sós, passava as
tardes no sino habitual, junto aos bambus; submerso no mesmo profundo
recolhimento, que Amália observara da primeira vez.
A
casa continuava solitária, tranqüila, silenciosa, como um retiro; mas à noite
ainda aparecia nas janelas de Julieta o clarão sinistro, que batia nos olhos de
Amália como o facho lúgubre de um sacrilégio.
Que
se estava passando dentro daquele aposento, enquanto ela com os olhos cravados
na veneziana feria sua alma de encontro às réstias de luz, que se enfiavam
pelas rótulas?
Não
poder arrancar esse obstáculo, que lhe ocultava o interior! Já não tinha
escrúpulos, já não considerava essa curiosidade uma indiscrição. Ali não era
Amália quem estava, mas Julieta na pessoa dela; Julieta que tinha o direito de
defender contra uma intrusa a santidade de seu amor e o recato de sua câmara
nupcial.
Esta
ansiedade, e as decepções que daí lhe provinham a todo instante, aumentaram a
tristeza de Amália; pelo que o Sr. Veiga cedendo às instâncias da mulher,
decidiu a viagem à Europa.
A
moça, a quem a idéia de uma separação assustara, compreendeu todavia a
necessidade de arrancar‑se à fatal dominação que sobre ela exercia aquele
homem, a quem não amava, e nem poderia amar nunca.
Ela
senta que faltavam‑lhe as forças para conter os impulsos de sua alma; e
conhecia o poder da irresistível atração que a prendia ali, e que a trouxera de
Petrópolis aonde' se tinha refugiado.
Era
preciso pois interpor o oceano e afastar‑se para longe, onde a maligna
influência que a tiranizava não pudesse chegar.
Afinal
o acaso favoreceu a curiosidade da moça Por esquecimento ficara aberta uma
janela, não do toucador, mas da sala próxima. Foi o Abreu, ao escurecer, quando
andara ali a espanar, contando fechá‑la mais tarde.
Amália alvoroçou‑se com esta circunstância; logo
conheceu que nada adiantava. Era‑lhe impossível distinguir coisa alguma na
escuridão da sala. Já ia se retirar, quando renasceu‑lhe a esperança.
A
lua assomara sobre o dorso do Corcovado; a sua claridade alva e doce como a luz
coada por um globo de cristal diáfano estampou‑se nessa face da casa.
À
medida que o astro elevava‑se no horizonte, essa faixa de luar cortada pela cornija
do teto, desdobrava‑se sobre a parede.
Amália
seguia com ansiedade o perfil luminoso, impaciente de que penetrasse no
aposento e o esclarecesse.
A
princípio nada pode distinguir porque as réstias mutilavam os objetos, deixando
uma parte na sombra.
Chegou,
porém, o momento em que viu. A sala fora inundada pelo luar e o interior
aparecia como uma cena de teatro, iluminada pela eletricidade.
A
moça não teve a mesma súbita comoção que da outra vez. Então ela nada
suspeitava, e o fato se havia apresentado a seus olhos de repente em toda a sua
realidade. Agora, além de já temer a repetição do golpe, fora a pouco e pouco,
reunindo os traços, lobrigando os vultos indecisos, que ela vira afinal
desenhar‑se o painel.
Lá
estava a mesma mulher da outra noite, não sentada como da primeira vez mas
reclinada em uma conversadeira acolchoada de cetim azul, e ainda mais
encantadora.
Tinha
adormecido, com a cabeça pousada na curva do braço, e o corpo meio voltado. O
roupão de fina cambraia, fechado na gola e nos punhos envolvia o seu talhe,
moldando os contornos graciosos, que não se podiam ver, mas palpavam‑se com os
olhos.
Amália
admirava com toda a violência do ódio, que lhe inspirava semelhante criatura.
Envergonhava‑se de ser bonita também como ela; e ao mesmo tempo senta não ter
uma formosura ainda mais esplêndida para humilhá‑la.
Um
instante depois Amália recuou precipitadamente, cobrindo o rosto com as mãos.
Hermano que tinha entrado no aposento, achava‑se de pé junto à conversadeira.
As
faces da moça abrasaram‑se do pejo que sentiu.. Revoltou‑se contra a audácia
daquele homem; e a indiferença dessa mulher que dormia quando um olhar
indiscreto devassava o seu recato.
Tinha
medo de ver; e uma irresistível tentação de olhar. Voltou as costas para a
janela; mas não teve coragem de afastar‑se. Entretanto Hermano aproximara‑‑se
silenciosamente da conversadeira, sentara‑se ao lado e ficou imóvel, como se
receasse levantar o menor rumor no aposento.
Esta
cena exacerbou a cólera de Amália e o seu escândalo pela traição de Hermano.
Nasceu‑lhe um desejo veemente de vingar Julieta. Se ela pudesse subtrair o
marido pérfido à sedução da amante; arrastá‑lo a seus pés humilde e submisso;
exprobrar‑lhe o seu perjúrio; e restituí‑lo arrependido ao amor da esposa!..
Que
não daria ela em troca desse poder? Que satisfação não teria de infligir o
justo castigo a esse crime?
Mas
bem compreendia, no seu despeito, que não tinha sobre Hermano a menor ação.
Ela, uma das belezas mais festejadas da corte, rainha nos salões, e dos mais
brilhantes vassalos; querida e adorada por tantos admiradores, que todas as
tardes faziam uma légua de carro ou a cavalo, só para a verem ao longe e de
passagem; ela, Amália, não merecia a atenção daquele excêntrico, seu vizinho,
que poderia se quisesse olhá‑la a todo momento, comodamente, sem o menor
sacrifício.
Talvez
nem a conhecesse, e não soubesse que ela habitava ao lado de sua casa... Mas
não; da vez em que o surpreendera ouvindo‑a cantar; curiosidade que a tinha
irritado a ponto de bater‑lhe a janela.
Agora
arrependia‑se do seu arrebatamento. Devia ter‑se contido naquele momento, e
servir‑se dessa impressão produzida por sua voz para atrair esse homem, fasciná‑lo
também com a sua beleza, dominá‑lo, e então esmagá‑lo com todo o seu desprezo.
Fora
mal inspirada. Hermano ofendido com a
desfeita que sofrera, não se arriscaria a nova repulsa. Entretanto por que não
havia ela de tentar o meio que lhe restava para reatar o primeiro e único
movimento desse homem para ela?
No
dia seguinte, depois do almoço, Amália sentou‑se ao piano; abriu a partitura da
Lucia; e hesitou por algum tempo As portas das janelas estavam abertas; foi
cerrá‑las e pela fresta lançou um olhar à chácara vizinha. Estava erma e
tranqüila.
Então
a moça decidiu‑se, e cantou com emoção que nunca tivera em suas estreias de
sala. Também nunca ela cantou melhor, com mais alma e paixão.
Terminando,
ergueu‑se precipitadamente. Arfava‑lhe o seio, menos do esforço que fizera, do
que do anelo de uma esperança que a agitava. Sentia que esse momento podia
decidir de seu destino.
Calcando
com a mão esquerda as pulsações do coração. caminhou para a janela, pálida e
trêmula, e procurou com os olhos o lugar onde Hermano a escutara da outra vez.
Não havia ninguém.
CAPÍTULO 11
A noite apareceu Henrique Teixeira, que andava um
tanto arredio
O
médico desistira do seu plano de trazer Hermano às partidas do Sr. Veiga, desde
que D. Felícia tinha abandonado a idéia do casamento. Continuou, porém, a
freqüentar a casa com a mesma assiduidade. Foi só quando percebeu certa
repulsão de Amália para ele, que se retirou.
A
causa dessa repulsão não a podia precisar; mas suspeitou que se referia a
Hermano, Seda porque fora ele quem envolvera o amigo na existência da moça; ou
era ao contrário porque não tivera força de aproximá‑lo dela?
A
verdadeira causa, nós a sabemos.
Era
a indignação que Amália sentira contra o esposo infiel e que ressaltava sobre o
amigo, como sobre tudo o mais que lhe pertencia.
—
Já tive o prazer de ouvi‑la hoje, disse o doutor apertando a mão de Amália.
—
Passou por aqui?
—
Estive na sua vizinhança.
Amália
entendeu a alusão.
—
Ah! exclamou com indiferença.
Quando
a moça começou a cantar naquela manhã Teixeira estava em casa de Hermano e
conversavam os dois no gabinete. As primeiras notas este levantou‑se; esqueceu
a presença do amigo e saindo à chácara aproximou‑se da casa vizinha,
resguardando‑se com a folhagem do arvoredo.
Teixeira
que o acompanhara, sentou‑se junto dele e escutou. Aquela vivacidade do amigo,
tão alheio a tudo que não se prendia à sua antiga existência, e a emoção com
que ele ouvia a Amália, o surpreenderam, Interrogou as suas recordações.
Julieta cantava essa ária, o que explicava tudo.
Terminado o canto, Hermano voltou e gabinete a
conversa, sem a menor alusão ao incidente. Henrique de seu lado também absteve‑se
de qualquer observação, e mui de propósito.
Deixando
o amigo, lembrou‑se o doutor de fazer à noite uma visita à família Veiga; e no
primeiro ensejo referiu a Amália todas as circunstâncias do que ele chamava um
triunfo.
—
Um triunfo artístico bem entendido, acrescentou sorrindo.
—
Os outros não são para mim, observou Amália em um tom de modéstia desdenhosa,
que tornava ambígua sua frase.
A
moça conteve e dissimulou a alegria produzida pela confidência do doutor. Agora
sabia que Hermano a tinha ouvido e que sua voz atraia aquele homem indiferente
ao mundo. Esta certeza encheu‑a de confiança
Desde
esse dia não cantou mais a Lucia. As vezes ensaiava uns prelúdios, como quem se
preparasse, e de chofre passava a outra peça, que executava primorosamente.
Compreende‑se
bem o que devia ser Amália nesses dias, convencida como estava de que o seu
encanto, o seu condão, estava na voz. Todos os esplendores de sua formosura,
todas as seduções de sua pessoa, toda sua graça e gentileza, ela os transportou
para a música e idealizou em arpejos e melodias.
Quem
já lhe tivesse admirado a beleza a reconheceria nesse canto inspirado que era
como uma transfusão de sua radiante imagem. Seus lábios somam num trinado, com
a mesma garridice com que desabrochavam a sua rubra flor.
A
moça já não duvidara de seu império. Ela senta em torno de si, a envolvê‑la
incessante a admiração de Hermano. A cada momento via ou adivinhava na
espessura das árvores, na penumbra de uma janela, o olhar que a buscava com
ansiedade e a seguia infatigável.
Entretanto
mostrava‑se despercebida dessa contemplação. Se aparecia à varanda ou passeava
no jardim, não dava o menor sinal de ocupar‑se com a casa vizinha que antes a
absorvia tão completamente. Saia agora mais vezes para ter o gosto de ver‑se
acompanhada de longe e respeitosamente; ou para tornar mais desejada a sua
presença.
Amália
não tinha cultivado a arte de fazer‑se amar que se chama faceirice; mas parece
que é esse um dom natural da mulher. São as asas da borboleta, que nascem na
estação própria, quando é tempo de voar.
As
partidas do Sr. Veiga tinham continuado; menos brilhantes do que outrora,
porque Amália já não as animava com sua alegria e espírito; mas sempre
concorridas. D Felícia insista nessas recepções, com a esperança de distrair a
filha.
Uma
noite, Amália, que mostrava certa volubilidade nervosa, dirigia amiúdo os olhos
para a porta, como se esperasse alguém. Eram oito horas. Henrique Teixeira
entrou, acompanhado por um cavalheiro alto e elegante.
A
moça estremeceu reconhecendo Hermano; entretanto tinha um pressentimento mais
do que isso, a certeza dessa visita. Ninguém lhe dissera coisa alguma; mas ela
percebeu por certos antecedentes que o fato ia realizar‑se enfim.
Hermano
apresentou‑se ele próprio a Amália, como um admirador de sua bela voz que o
tinha por muitas vezes arrebatado.
—
Já me ouviu cantar? Onde? perguntou Amália simulando ironicamente uma surpresa.
—
Não me conhece então? interrogou o cavalheiro por sua vez, pousando no
semblante da moça um olhar comovido.
—
Se nunca o vi! .. observou a moça com a mesma estranheza.
— Nunca?
Ela
cerrou as pálpebras corando; quando as ergueu de novo todo o segredo de sua
alma estava nos seus olhos límpidos e no meigo sorriso que veio à flor dos
lábios.
Depois
disso falaram sobre mil nugas dessas que servem às conversas de sala. Eles bem
sentiam a insignificância de suas palavras; mas achavam prazer nessa troca de
futilidades que os retinha juntos, e dava‑lhes pretexto para comunicarem‑se
pelo olhar e pelo gesto.
O
mesmo aconteceu nas outras noites. Quem os visse tão presos um do outro, tão
entretidos na sua conversa, pensaria talvez que tratavam de coisas importantes,
quando efetivamente não se ocupavam senão de trivialidades já muito repetidas.
Nessa
fase da existência de Amália e Hermano, nada há de novo e de particular. Foi o
que tem sido sempre e há de ser eternamente a aurora do amor Quem não conhece
essas doces alvoradas do coração, que espancam todas as sombras e nos
transformam a vida em um esplendor?
Hermano,
não se lembrava mais do homem que fora; nem tinha consciência de outra vida,
senão essa que lhe trouxera Amália. Quanto à moça, os seus primeiros terrores,
a indignação que sentira, o segredo que surpreendera; tudo se dissipara como por
encanto. Ignorava o passado. A viuvez de Hermano, as relações dele com a
desconhecida; ela não sabia mais disso; não sabia senão que amava.
Como
se havia operado esse milagre? Ninguém o poderia explicar, nem eles mesmos que
não tinham consciência da revolução profunda consumada em sua vida no espaço de
alguns dias apenas.
Mais
de três anos foram vizinhos, avistando‑se freqüentemente, sem que se
preocupassem um do outro. De repente algumas palavras de uma conversa, algumas
notas de uma ária, decidirem de seu mútuo destino..
D.
Felícia enchera‑se de esperanças e julgou‑se dispensada do sacrifício da viagem
à Europa, à qual só extremos de mãe a obrigariam. A prudente senhora sempre
entendera que, de todas as mudanças de clima, a mais proveitosa para uma menina
depois dos dezoito anos era essa que ela faz da casa paterna para o domicilio
conjugal.
—
Qual Vichy!... dizia aos médicos Não há
como água da pia.
Entretanto
os dias comam; e o acontecimento esperado não se realizava. Debalde a senhora
chamava constantemente a conversa para o assunto da viagem, e insistia na
proximidade da partida, lembrando as mágoas da separação.
Os
dois apaixonados, absorvidos consigo não a escutavam Para eles não havia nem
passado, nem futuro. A vida resumia‑se no presente; e o presente era aquela
íntima efusão em que se isolavam dos outros, em um canto da sala.
Uma
vez, porem. D. Felícia interrompeu a confidência de todas as noites para
interpelar diretamente a filha.
—
Amália, teu pai amanhã vai escolher os camarotes. Não queres ir com ele?
—
Tão cedo! observou o Borges. Ainda faltam dois meses.
—
O Sr. Veiga quer prevenir‑se com antecedência para obter os melhores lugares.
—
Mamãe não vai? perguntou Amália.
—
Eu não; só de falar em vapor já estou enjoada.
—
Irei com papai. A que horas?
—
Depois do almoço.
—
Às dez horas, disse a moça enviando a Hermano em um olhar essa indicação.
Ele compreendeu.
— Então sempre se resolve a deixar o seu Rio de
Janeiro?
— Mamãe vai.
— Mas a senhora podia ficar.
— Com quem? perguntou ela surpresa.
— Com seu marido.
Amália enrubesceu.
— Posso falar a seu pai?
A moça ergueu‑se perturbada e aproximou‑se da mãe para
dizer‑lhe ao ouvido:
— O Sr Hermano pergunta se pode falar a papai.
D. Felícia voltou‑se para o seu hóspede, e disse‑lhe
com um sorriso:
— Pode; ele está no gabinete.
CAPÍTULO 12
Guiado
pelo aceno de D Felícia, Hermano dirigia‑se ao gabinete do Sr. Veiga, que tinha
por costume fazer diariamente a sua caixa particular antes do chá.
Ninguém
ouvira na sala o breve diálogo dos dois namorados; e menos a pergunta que
Amália transmitira à mãe, calando aliás a verdadeira intenção que Hermano lhe
havia dado. Mas as pessoas presentes suspeitavam que se tratava do pedido
formal de um casamento, que todas já previam.
Quanto
a D. Felícia, tinha certeza do fato. A confusão da filha e o alvoroço que se
traia na voz e nas palpitações do seio, revelavam bem o sentido da pergunta de
Hermano e a significação do seu ato.
Amália,
para esquivar‑se à curiosidade geral que lhe interrogava a atitude e a
expressão da fisionomia, fora sentar‑se ao piano; e tocava com um brio nervoso.
para dissimular na agitação do exercício musical e na excitação da fadiga os
sobressaltos involuntários bem como os rubores que lhe abrasavam as faces e o
colo.
Pelo
seu gosto se teria retirado da sala; mas Hermano devia ressentir‑se dessa
ausência, e ela mesma não podia privar‑se da sua presença pelo resto da noite.
Sair para voltar depois da decisão era expor‑se ainda mais ao reparo.
Durou
meia hora a expectativa
Ouviu‑se
abrir a porta do gabinete e todos os olhos volveram‑se para o corredor, com
exceção dos de Amália que se abaixaram a pretexto de decifrar uma frase.
Ela
não viu nada, nem ali, nem no papel, nem em torno; tinha uma névoa nos olhos.
Ouviu, porém, uma voz comovida pronunciar seu nome e sentiu que lhe apertavam a
mão.
Quando
recobrou‑se desse soçobro e ergueu‑se correndo a sala com o olhar, Hermano
partia.
Voltara
ele do gabinete grave e sombrio; despedira‑se de Amália e da dona da casa com
um aperto de mão, cortejara as outras pessoas e retirou‑se sem uma explicação
daquele procedimento estranho.
Fora
tal a surpresa, que ninguém, nem D. Felícia, tivera a presença de espírito
necessária para fazer a menor observação. Não havia para este fato senão uma
interpretação: e foi a que todos lhe deram imediatamente, apesar de a
considerarem inadmissível. Hermano tinha sofrido uma repulsa do Sr. Veiga.
Mas
como era isso possível, sabia‑se do desejo que tinha o capitalista de casar a
filha; e dos avanços que a família fazia ao pretendente, e tão a contento da
moça?
D.
Felícia foi ao encontro do marido que entrava na sala e perguntou‑lhe a meia
voz, com sofreguidão, o que se havia passado com Hermano.
—
Nada, respondeu o Sr. Veiga mais admirado do tom do que da pergunta. Ofereceu‑me
recomendações para a Europa e prometeu dar‑me algumas informações úteis para a
viagem.
—
Só? perguntou a senhora.
— Só.
O
pasmo foi geral. D. Felícia não se pôde conter.
—
Não se precisa das suas informações; ele que as guarde e nos livre de sua
presença
O
Borges encartou a sua mofina:
—
Eu sempre o tive por maluco
O
Sr. Veiga dissera a verdade. Quando Hermano estava no gabinete, o capitalista
estava no meio de uma adição.
Para
não perder o trabalho começado, e usando já da liberdade de futuro sogro; pediu
ao hóspede o favor de esperar um instante, dois minutos, enquanto fechava a
conta.
Mal
sabia ele que estes dois minutos iam decidir da felicidade da filha.
Hermano
esperou, com a emoção que assalta todo homem de caráter ao tomar grande
responsabilidade. Não era a primeira vez que tinha essa emoção. Lembrou‑se do
momento em que pedira a mão de Julieta. O passado, que parecia morto, ressurgiu
e apoderou‑se dele.
Ficou
estupefato, vendo‑se ali naquela casa e encontrando‑se nessa última fase de sua
existência, que ele se espantava de ter vivido. Parecia‑lhe sonho esse período.
Não compreendia como ele, o marido de Julieta, acreditara que pudesse nunca
substitui‑ia por outra mulher.
O
capitalista concluiu a sua conta e voltou‑se para a visita. Trocaram algumas
palavras sobre o calor que tinha feito durante o dia, e calaram ‑se.
—
Está próxima a sua viagem à Europa? disse Hermano depois de uma pausa.
—
E verdade! Daqui a dois meses.
—
Sabe que já fiz esta viagem? Posso dar‑lhe algumas informações úteis.
Hermano
falou um quarto de hora sobre Paris e Londres sem consciência do que dizia; o
Sr Veiga ainda absorvido nas suas parcelas de caixa não lhe prestou a menor
atenção; e assim terminaram a entrevista.
Os
convidados compreenderam a conveniência de retirarem‑se mais cedo; o que, porem
os decidiu a usar dessa atenção foi o desejo de espalharem logo, naquela mesma
noite, a noticia do rompimento, pois outra coisa não era o que se acabava de
pensar.
O
Teixeira que chegara tarde, quis atenuar o procedimento do amigo, e teve com D.
Felícia longa explicação.
Parece
que tocou nas excentricidades do viúvo atribuindo a elas a sua hesitação, o que
a senhora moralizou com esta exclamação:
—
Então bem diz o Borges. E um maluco e foi uma felicidade que eu o descobrisse,
antes de dar‑lhe minha filha
Amália
tinha‑se recolhido. A mãe foi achá‑la pensativa:
— Tu sabes quanto desejo ver‑te casada, Amália; mas
antes fiques toda a vida solteira, do que teres a desgraça de aturar um doido.
—
A sua doidice, mamãe, também eu a tenho. Ele ama!...
—
A ti? perguntou D. Felícia com ironia
—
A mim também; mas não me ama bastante para fazer‑me sua mulher.
—
Não te faltam maridos.
Amália,
durante as suas breves relações com Hermano, costumava à tarde sentar‑se no
jardim, em um caramanchão que ficava perto da grade, mas oculto pelas
trepadeiras. Ali viam‑se de passagem, conversavam um instante, e separavam‑se
para de novo reunirem‑se à noite na sala.
Passados
os primeiros dias depois do rompimento, a moça tornou a esse hábito, talvez na
esperança de que ele facilitasse a aproximação de Hermano. Ela adivinhara a
razão que havia determinado a súbita mudança do amante; mas queria ouvi‑la de
seus lábios.
Com
efeito uma tarde, ao escurecer, ouviu o rangido da areia sob os passos de
alguém que se aproximava; não ergueu os olhos do livro, mas pressentiu que era
ele; e não se enganava.
—
Não venho pedir‑lhe perdão. Não o mereço; e a senhora não pode e não deve
conceder. Desejo, porém que saiba a causa do meu procedimento, para que não
duvide um instante de si e do respeito e admiração que me inspirou Quer ouvir‑me?
—
Fale, murmurou a moça comovida.
—
No momento de ligar para sempre o seu ao meu destino, hesitei; apoderou‑se de
mim um grande tenor. Tive medo de fazer a sua infelicidade.
—
Por quê?
Hermano
concentrou‑se um momento.
—
Quem possui a sua beleza e a sua alma, tem o direito de ser amado
exclusivamente, sem reservas e sem partilhas. A senhora não pode ser a simples
companheira do homem a quem se unir. P preciso que esse homem lhe pertença, que
viva inteiramente de sua afeição, que se consagre todo à sua felicidade. Se ele
tivesse uma idéia, uma preocupação, uma reminiscência, que o disputasse ao seu
amor cometeria uma infidelidade; e a senhora havia de exprobrar‑lhe o tê‑la
enganado. Podia eu, conhecendo‑a como a conheço, sacrificar o seu futuro, que
deve ser tão brilhante?
Amália
pousou os seus belos olhos no semblante de Hermano.
—
Tem razão, disse ela docemente. O meu amor não basta para encher tão
completamente a sua vida, que não haja lugar nela para outra afeição. Desde que
o passado ainda vive em sua alma, o que iria eu fazer senão perturbar a
tranqüilidade de seu espírito e profanar as suas recordações? É melhor assim;
guardaremos pura e sem ressaibo a lembrança desses poucos dias que vivemos
juntos.
Ela
ergueu‑se, estendendo a mão ao amante.
—
Adeus, Hermano.
—
Amália!... Talvez.— Não façamos do nosso amor um galanteio de sala. Já esqueceu
Julieta e poderia esquecê‑la nunca?
Hermano não respondeu.
—
Bem vê que é impossível.
A
moça afastou‑se lentamente Hermano entrou na sua chácara, e sentou‑se no
primeiro banco A lua vinha assomando no horizonte.
Ouviram‑se
prelúdios de piano; e uma nota melancólica e suavíssima cortou o silêncio da
noite
Era
a voz de Amália que soluçava o Addio del passato da Traviata
CAPÍTULO 13
Amália,
durante a longa vigília daquela noite, se compenetrara bem da situação, em que
a tinham colocado os acontecimentos.
A
proximidade do homem que amava, e a quem não podia pertencer; a facilidade de
vê‑lo a cada instante involuntariamente, ou a casa onde habitava; essa certeza
de sua presença, ali, a alguns passos dela, era um suplício cruel.
Cumpria
quebrar de uma vez esse elo material, já que não podiam unir‑se pelos vínculos
d'alma.
Amália
lembrou‑se a principio de passar fora da corte algumas semanas que faltavam
para a viagem; mas pareceu‑lhe melhor apressar de uma vez a partida para a
Europa.
Com
esta idéia, ergueu‑se pela manhã, e saindo do seu quarto, encaminhou‑se ao
gabinete do pai resolvida a fazer‑lhe o pedido. Foi, porem na sala de jantar
que o encontrou em companhia da mãe.
Veiga
abraçou a filha muito risonho; e prendendo‑lhe a loura cabeça no peito, pôs‑lhe
diante dos olhos uma carta aberta, na qual a moça reconheceu a letra de
Hermano.
Antes
que ela se recobrasse da surpresa e pudesse ler a carta, D. Felícia lhe
comunicara sofregamente o assunto.
Era
um pedido de casamento, no qual Hermano manifestava o desejo de obter
pessoalmente de Amália o seu consentimento
—
Pode vir? perguntou o pai à filha depois que esta acabou de ler a carta.
—Ainda
não, respondeu Amália agitada.
—
Quando? disse D Felícia.
—
Quero pensar, mamãe.
A
senhora, para quem Hermano agora era o homem mais sensato do mundo, fez à filha
mui judiciosas observações acerca da conveniência de apressar a decisão: e não
se esqueceu de citar em seu abono o conhecido anexim que dá por transtornado o
casamento adiado.
Amália
persistiu não obstante. e com uma razão que desarmou a mãe.
—
Se é preciso que responda imediatamente, mamãe, recuso P porque desejo aceitar,
que peço a liberdade de refletir. Para dispor de minha vida inteira, não são
muitos alguns dias.
—
Pois bem, Amália, pensa à tua vontade; mas lembra‑te de que a viagem está
próxima. É verdade que pode‑se adiar, até mesmo porque o tempo não anda bom.
tem havido tantos temporais. Que diz, Sr Veiga?
O
capitalista que lia os jornais, levantou os óculos para observar:
—
Mas o câmbio é ótimo. A ir não devemos perder esta ocasião
Amália hesitou durante alguns dias. Ela tinha
naquela carta, lida tantas vezes, e guardada consigo, a prova cabal, além de
muitas outras, do amor que Hermano lhe consagrava Mas podia ela confiar a sua
sorte desse amor?
Hermano
era uma alma nobre, um caráter leal, incapaz de iludí‑la Não duvidava dele; mas duvidava de si.
Receava não ter força para dominar e possuir esse coração generoso, arrancá‑lo
ao passado em que se havia sepultado, e ressuscitá‑lo ‑t felicidade.
Ela
acreditava que o marido de Julieta ainda amava a primeira mulher e vivia de sua
lembrança
Mas
esse afeto de além túmulo não podia encher‑lhe a existência; e por isso aquela
alma rica de paixão e mocidade se desprendia da sua idolatria para buscar no
mundo uma expansão, um sentimento de que se nutrisse.
Nesse
impulso, Hermano se lançara na realidade, fascinado pela beleza da
desconhecida; mas, em breve a ilusão desvanecera‑se. O homem regenerado pelo
amor casto de Julieta não podia corromper‑se numa lição impura. Passada a
alucinação, tornara ao seu culto.
—
Foi então que ele, desesperado pela recordação da mulher, e crendo em mim outra
Julieta, começou a amar‑me, pensava Amália; e talvez esse amor o tenha salvado,
dando‑lhe forças para reabilitar‑se. Sem ele, sem um afeto que o obrigue e o
ampare, não se deixará dominar ainda pela beleza fatal daquela mulher, ou de
outra como ela? E poderá reerguer‑se da nova queda?
A
moça decidiu então na generosidade de seu amor votar‑se à guarda e arrimo desse
homem infeliz pela exuberância de sua alma.
—Mas,
se o amor que inspirei, e que ele sinceramente acredita sentir por mim, não for
mais do que um capricho efêmero um reflexo apenas da paixão que tem por
Julieta? Quando dissipar‑se o encanto me perdoará ele ter profanado o culto da
esposa e rompido para sempre o elo que o prendia à primeira e única mulher
amada? Não terei eu sacrificado a minha vida, não para dar‑lhe a felicidade,
mas para fazer a sua desgraça?
Era
esse o grande problema do seu destino.. Amália bem o compreendia; e sem
deliberação para resolver por si, deixava isso ao tempo esperando uma inspiração
do céu. Entretanto passavam os dias aproximava‑se a época da viagem; e talvez
fosse esta o melhor e o único desenlace.
Toda
essa hesitação, bastou um olhar para dissipá‑la. Amália indo com a mãe à
cidade, encontrou Hermano e não pôde resistir ao gesto de doce resignação com
que ele a saudou.
É
o meu destino, pensou a moça. O meu e o seu.
Respondeu
ao cumprimento, parando para falar‑lhe; e na despedida, ao apertar‑lhe a mão
disse:
—Até
à noite.
Ao
escurecer, quando Hermano chegou Amália o esperava no jardim. Antes que ele
preferisse qualquer palavra, a moça, espontaneamente e como se continuasse um
diálogo não interrompido, entregou‑lhe a mão dizendo:
—
Com uma condição.
—
Qual?
—
Se até o último instante eu perceber o menor sinal de arrependimento ou mesmo
de hesitação, fica‑me o direito de restituir‑lhe a liberdade.
—
Duvida de meu amor, Amália? Depois de ter‑lhe dado a maior prova? tornou
Hermano magoado. Que conceito lhe mereço então?
—
Não! acudiu a maca vivamente. Não duvido; nem do seu amor nem da sua lealdade,
Hermano P o interesse pela sua felicidade que me inquieta.
A
noite as visitas receberam com a noticia do malogro da viagem à Europa, a
participação ainda confidencial do próximo casamento de Amália com Hermano.
A
certeza dessa união, esperada pelas pessoas que freqüentavam a família Veiga,
foi bem recebida; todos felicitaram cordialmente os noivos. O Borges, porem.
embora se mostrasse dos mais pressurosos em aplaudir, ia pelos vários grupos de
convidados insinuando um veremos significativo.
O
Teixeira que o ouviu, incomodou‑se; e receou talvez o agouro daquela dúvida.
Entretanto ele acabava de conversar com o amigo; e embora na sua qualidade de
médico calcasse na cicatriz dessa alma para conhecer se doía‑se ainda do golpe,
não descobriu perplexidade no espírito de Hermano. A sua resolução era firme e
calma; tinha sido friamente meditada, não provinha de um assomo de momento.
No
dia seguinte começaram os preparos do casamento, que por parte de Amália já
estavam adiantados. Desde a apresentação de Hermano em sua casa D. Felícia.
vira nele o marido que tanto desejava para a filha e por isso a pretexto de
arranjos de viagem, o que ela tinha encomendado às costureiras e modistas era
um rico enxoval de noiva, já quase pronto.
Por
parte do noivo também não havia muito que fazer. A casa estava pronta; e não
faltava senão a pintura, pois ainda conservava a primitiva que recebera por
ocasião do primeiro casamento. Isso e a substituição dos móveis era negócio
para um mês.
Amália
acompanhou de longe e com indiferença esses pormenores domésticos, que têm
geralmente um especial encanto para os noivos, como primícias que são da vida
conjugal, e flores de uma primavera casta e serena.
A
moça tinha outra preocupação mais séria que absorvia a sua solicitude.
Observava o noivo e estudava a sua alma, atenta ao menor sintoma de
desfalecimento que porventura se manifestasse na sua resolução O que ela temia
sobretudo era um erro fatal.
—
Se depois de unidos para sempre a sua alma separar‑se de mim, eu serei um
obstáculo, um tormento para sua existência. Longe, nunca mais deixará de amar‑me;
entretanto como meu marido, pode até odiar‑me.
Esta
reflexão íntima revela o que se passava em Amália. O seu tempo de noiva, que
para as outras é o idílio suave de um amor partilhado, para ela foi todo cheio
de inquietações, de sustos e de graves pensamentos.
Ela
velava sobre o seu futuro guardando‑se para mais tarde gozar sem receios de sua
felicidade, se Deus a abençoasse.
Poucos
dias antes da época marcada para o casamento, D. Felícia. a pedido do noivo fez
com a filha uma visita à casa que já se achava preparada. Nessa ocasião Amália
foi assaltada por uma idéia que ainda não lhe tinha ocorrido, e que a fez
estremecer.
A
mãe falara do seu toucador e quarto de dormir. Estas palavras desenharam em seu
espírito pela primeira vez a realidade doméstica de sua futura posição naquela
casa. Ela vinha substituir outra mulher que ali fora dona e senhora antes dela.
Seus
aposentos seriam os mesmos aposentos de Julieta, fechados desde a morte desta e
respeitados durante cinco anos como um santuário?
E teria ela, Amália, a
coragem de profaná‑los como o fizera uma dessas mulheres, que não conhecem a
santidade da família?
CAPÍTULO 14
Depois
de pequena demora na sala, Hermano convidou as senhoras para verem o interior
da casa.
—
Em primeiro lugar o toucador, disse D. Felícia. que pretendia aferir a ventura
da filha pelo luxo desse aposento especial.
Amália
que passara adiante dirigia‑se para o lado do edifício em que ela sabia desde
muito achar‑se a sala que servia de toucador a Julieta. Hermano, porém,
adiantou‑se com visível precipitação e tomou‑lhe a passagem.
— Por aqui, Amália, disse ele um tanto perturbado e
indicando com o gesto a direção oposta.
Ai
estavam efetivamente os aposentos da noiva, onde a arte reunira todas as
comodidades domésticas sob a forma mais graciosa, dando à riqueza dos móveis os
realces da elegância.
Enquanto
D. Felícia. regozijava‑se com esse luxo, que esperava encontrar, e distribuia
os seus elogios a cada peça, Amália observava silenciosamente, estudando com
uma prevenção que não podia vencer, o aspecto e arranjo do aposento que lhe
estava destinado.
A
primeira circunstância que provocou sua atenção, foi o contraste saliente deste
toucador com o outro, o anterior, que ela vira a primeira vez quando menina, e
tornara a ver ultimamente..
Apesar
de corresponder exatamente a repartição das duas asas do edifício e de terem
portanto as salas o mesmo plano e as mesmas dimensões, tão opostas eram no
adereço e arranjo que denunciavam o propósito de torná‑los o mais diferentes
que fosse possível.
O
antagonismo manifestava‑se em tudo, na pintura, na tapeçaria, nos ornatos, nos
móveis. As cores desdiziam inteiramente. O primeiro toucador era azul e branco;
este rosa e ouro. Os trastes daquele, de erable; os deste, de ébano. A
colocação dos objetos inversa.
Quando
D. Felícia. passou ao quarto de dormir. a filha disfarçou para não entrar; mas
de relance percebeu que ali havia dominado o mesmo intuito.
Para
Amália esta antítese foi uma cifra do pensamento recôndito de Hermano; e ela
embalde perscrutou‑lhe na fisionomia o verdadeiro sentido. O noivo satisfeito e
contente com os elogios de D. Felícia. e com o interesse que a moça tomava por
seu toucador, não revelava no semblante a menor preocupação.
Todavia
Amália persistiu em descobrir um desígnio naquela circunstância que podia ser
casual. O susto que sentira a princípio, com a idéia de ocupar os mesmos
aposentos de Julieta, acabava de transformar‑se em uma fria suspeita é que
transpassava‑lhe o coração.
Pensativa,
reservada, seguiu a mãe durante a visita minuciosa, que fez ao resto da casa.
Hermano, ocupado em mostrar à senhora os vários objetos do trem doméstico, não
teve ensejo de reparar na frieza da noiva Se alguma vez achou‑a recolhida e
silenciosa, atribuiu sua timidez ao recato natural da menina, ante esse prólogo
da vida conjugal, que se desdobra aos seus olhos de virgem noiva.
Nesse
dia, quando Amália só e em liberdade, pôde coligir suas impressões e refletir
sobre o incidente da visita, a suspeita que se aninhara em seu espírito
cresceu, e tornou‑se em certeza. A alma de Hermano estava escrita naquele
símbolo, que ela a princípio não pudera decifrar.
Julieta
ainda tinha naquela casa um templo onde era adorada ainda ela dominava e
possuía tão completamente o coração do marido que este, apaixonado por outra
mulher a quem ia ligar‑se eternamente e na véspera dessa união, não podia banir
de si o passado e divorciar se do primeiro amor.
Era
por isso, era para conjurar as recordações implacáveis que surgiam a cada
instante; para iludir‑se emprestando uma virgindade artificial a emoções já
outrora sentidas, que Hermano recorrera calculadamente àquela diversidade dos
objetos que deviam cercá‑lo na fase nova de sua vida.
Tinha
feito como o pintor que obrigado a repetir um quadro histórico, buscasse na
divergência das cores e na mudança das posições, uma novidade que faltava ao
assunto; e sem a qual a monotonia lhe matada a inspiração.
Amália recordava‑se de uma observação anterior.
pintava‑se a casa, notou que a asa direita do edifício continuava fechada; mas
não deu a isso nenhuma importância, distraída como andava com outros cuidados.
Agora tinha a explicação. Essa parte da casa, que fora particularmente habitada
por Julieta, ficara intata. Era uma relíquia.
—
É preciso romper este casamento! disse então Amália consigo.
Tomada
a resolução, ela espreitou o ensejo de levá‑la a efeito de modo que poupasse a
suscetibilidade de Hermano. Quando estava só fortalecia‑se no seu intento; mas
quando chegava o noivo e ela o via tão feliz e tão regenerado por seu amor, não
tinha ânimo de precipitá‑lo daquele faqueiro transporte, que também a
arrebatava.
Uma
vez o amante exprobrou‑lhe a esquivança que ela mostrava acerca desses projetos
de futuro, os quais não passam muitas vezes de fantasias, mas são para os
noivos como uma antecipação da felicidade conjugal.
—
Quer saber a razão? disse Amália.
—
Não é preciso que o diga. Se me amasse como eu a amo, achada o mesmo prazer
nestas futilidades.
A
moça respondeu‑lhe com uma expressão grave e um olhar repassado de tristeza:
—
Se não o amasse, como o amo, achada decerto prazer em falar nessas esperanças e
promessas de uma ventura que é o meu sonho. Mas ao contrário elas me
entristecem.
—
Por quê, Amália? perguntou ele surpreso e inquieto.
—Tenho
um pressentimento.
—
Não diga isto!
—
Não serei sua mulher, Hermano.
O
amante adivinhou a razão dessa dúvida que afligia o espírito da moça; e
respondeu‑lhe com uma queixa:
—Mostrei‑lhe
acaso, Amália, o menor indicio de arrependimento e hesitação para que retire o
consentimento que me deu?
—
Não o retiro; dei‑lhe a mão; ela pertence‑lhe.
—
Mas então quem se oporá à nossa felicidade?
—
Não sei; mas tenho medo que ela não se realize.
—
Faltam tão poucos dias!
—
Até à hora, ninguém sabe o que pode acontecer.
Hermano
esforçou‑se por dissuadir Amália daquela idéia, e com tanta efusão falou‑lhe de
seu amor, que ela deixou‑se convencer, e creu enfim na possibilidade de ser
feliz.
Se
a moça cogitasse em um meio de fascinar o seu amante, de o prender ainda mais a
si, não poderia escolher melhor do que este receio sincero por ela manifestado
Desde aquele diálogo Hermano redobrou de extremos; e se já havia resumido sua
existência em Amália, não viveu mais senão das horas que passava junto dela.
Ao
chegar interrogava ansiosamente o semblante da moça receoso de ler nele a sua
condenação. Depois de retirar‑se, inventava pretextos para voltar uma e mais
vezes, como para certificar‑se de que nenhum acidente ameaçava de novo a sua
felicidade.
Esse
tempo foi para ele um continuo sobressalto‑ e para Amália o mavioso enlevo de
sentir‑se amada com todas as emoções e todas as energias dessa alma opulenta.
As dúvidas e receios de seu espírito dissiparam‑se completamente. Tinha agora a
confiança de seu poder, e a convicção de que Hermano lhe pertencia, e a ela
unicamente.
E
não advertiu que essa impulsão era talvez o efeito de um anelo estremecido pelo
temor, e ao qual talvez sucedesse uma reação violenta.
No dia marcado
celebrou‑se o casamento. Não sábado, dia tão impropriamente pelo uso para esse
ato solene. É com efeito difícil atinar com a relação que possa haver entre a
véspera do repouso e o instante em que principia para o homem a grave
responsabilidade de família Saturno devorando os filhos é um mau signo para a
fecundidade do matrimônio.
Amália
estava deslumbrante com seu traje de noiva. Os esplendores de sua beleza
ardente tomavam através dos cândidos véus uns tons suavíssimos.
Hermano
era o mesmo cavalheiro fino e elegante, que seus amigos tinham conhecido dez
anos antes Se a flor da primeira mocidade passara, a fisionomia, como o porte,
ganhara em distinção e naturalidade.
O
Sr. Veiga festejou o casamento da filha com um baile suntuoso. As duas horas
começou uma dessas intermináveis quadrilhas que servem de remate ordinário a
semelhantes reuniões dançantes.
A
alegria era geral; e os noivos foram dos que mais se divertiram. Ambos eles
renasciam para a vida brilhante dos salões da qual se tinham por algum tempo
afastado; ela durante a sua tristeza, ele durante a sua viuvez
Já o nascente bruxuleava,
quando o baile formou‑se em procissão para acompanhar os noivos à casa
CAPÍTULO 15
Voltando
de reconduzir os seus hóspedes, Hermano aproximou‑se do sofá onde Amália
sentara‑se
—
Estou caindo de sono, disse a moca conchegando‑se com um gesto gracioso na
longa capa de caxemira que lhe cobria as espáduas, e as vestes de noiva.
—
Por que não se recolhe? perguntou o mando.
Ela
hesitou um instante; mas afinal erguendo‑se com um faceiro assomo para romper o
casto enleio, dirigiou‑se ao toucador e ali achou sua criada.
Às
pressas açodadamente, como costumava quando recolhia‑se tarde e fatigada dos
divertimentos, trocou as sedas e atavios por um alvo e fresco roupão de
cambraia com fitas escarlates, delicioso traje no qual ela parecia vestida de
sua candidez e de seu pudor.
Sentou‑se
então no divã.
Estava
tão fatigada! Tinha dançado como uma menina de colégio que vai ao seu primeiro
baile. Não sentia o cansaço do corpo somente; o espírito também havia sofrido
as emoções daquela noite e dos dias anteriores. Era feliz, tão feliz, que sua
alma carecia de repouso.
Reclinou
a cabeça no recosto do divã, e insensivelmente o seu lindo talhe descaiu
lânguido. As pálpebras cerravam‑se a seu pesar: mas ela fazia um esforço para abri‑las.
Tinha um vago susto de abandonar‑se ao sono ali, sozinha; e também vexame de
que Hermano viesse encontrá‑la a dormir
O
marido entrou no toucador e chegando uma cadeira sentou‑se defronte
cautelosamente, para não perturbar o repouso da noiva. Ela não o sentira
entrar; mas abrindo os olhos viu‑o em face a contemplá‑la com enlevo.
Sorriu‑se,
e dando‑lhe a mão que ele guardou entre as suas, adormeceu como uma criança. A
presença de Hermano inspirou‑lhe nesse momento a mesma confiança, que outrora o
afago materno; o amor a ninou.
Hermano
demorou‑se algum tempo a admirar a graça de Amália assim adormecida
Involuntariamente seu pensamento enleando‑se nas reminiscências o transportou
ao passado, à noite de seu primeiro casamento.
De
repente, tornando daquele recordo ao presente volveu o olhar em tomo e ficou
atônito de ver ali em face dele a mulher que pouco antes admirava, a esposa a
quem se ligara havia poucas horas.
Ergueu‑se
pálido, desmudado, espavorido, e afastou‑se.
No
dia seguinte, eram dez horas da manhã quando um raio de sol brilhante e alegre
entrou pelo aposento de Amália como para festejá‑la. Durante a noite, a moça
acordara, e tonta do sono, buscara no próximo aposento o leito, onde refugiou‑se.
Pela
manhã a mucama abriu a janela do toucador; e uma réstia de sol batendo no
espelho refrangera acariciando o rosto mimoso da moça pousado em um ninho de
rendas.
Ela
abriu os olhos e saltou da cama, alegre como um passarinho.
—
Sinhá quer tomar alguma coisa? perguntou‑lhe a mucama.
—
Eu quero almoçar, que estou com muita fome.
—
Mando pôr na mesa?
—
Não; aqui mesmo, no toucador.
Amália
teve então uma idéia que lhe sorriu Sentou‑se à sua secretária, um mimo de
marcenaria, e escreveu a seguinte canta em papel que ali achou, com o seu
monograma:
"D.
Amália Veiga de Aguiar tem a honra de convidar seu marido Carlos Hermano de
Aguiar para almoçar em sua companhia, hoje, às onze horas, no seu toucador. O
ménu fica por conta do convidado."
A
moça fechou o seu convite e mandou‑o entregar a Hermano de quem senta a falta
perto de si. Ela não o censurava pela ausência; mas parecia‑lhe que ele devia
ter‑se apressado em saudá‑la logo pela manhã, e sobretudo nesse primeiro dia em
que dormira na sua casa.
Hermano
acudiu pressuroso ao convite; e os dois noivos almoçaram jovialmente perto de
uma janela, que dava para o jardim, ouvindo cantar os passarinhos e aspirando a
fragrância das flores que o vento, soprando nas roseiras esparzia sobre a mesa.
O
resto do dia passaram nesse mesmo devaneio amoroso lendo recitando versos,
recordando a breve história de sua afeição, e estremecendo ainda dos incidentes
que os ameaçavam tantas vezes de uma separação eterna.
No
meio destes lirismos, Amália escreveu à mãe uma carta cheia de ternuras; e D.
Felícia veio fazer à filha uma rápida visita que a encheu de júbilo por ver seu
contentamento.
O
jantar foi a reprodução do almoço. Comeram ali mesmo no toucador em uma mesa
volante, servidos pela mucama. Amália achava encanto nessa solidão a dois, em
que nenhum olhar estranho e indiscreto vinha perturbar a sua casta felicidade.
No
fim do crepúsculo, quando as sombras se condensavam entre as árvores, sairam os
noivos à chácara para espairecer. Sem intenção e sem consciência, Amália
dirigira o passeio justamente para aquele banco onde outrora Julieta sentava‑se
todas as tardes com o mando.
Hermano
a princípio a tinha acompanhado sem observação, mas visivelmente contrariado, o
que a noiva não percebeu por ter volvido os olhos para a casa paterna. Quando,
porém, a moça ia sentar‑se no banco, ele irrefletidamente impediu‑lhe o
movimento com o braço, e obrigou‑a a afastar‑se.
—
Não se sente ai, Amália.
Amália,
surpresa por aquele gesto, que não era um abraço, reconheceu o sito e adivinhou
a razão da repugnância do narco Sua alma confrangeu‑se. O erro, o erro fatal,
que ela tanto receou, estava consumado.
Calou‑se, porém, e seguiu silenciosamente o marido que
para que a ocorrência, falava‑lhe com volubilidade dos planos que tinha para
embelezamento da chácara, a fim de que Amália achasse ai todos os encantos,
quando, fatigada da sociedade. se deixasse ficar no seu retiro para repousar.
Notando
afinal a mudez e esquivança da moça compreendeu que a impressão fora profunda;
e para serenar‑lhe o espírito renovou os protestos tantas vezes de que ela era
sua felicidade, sua vida, sua alma.
—
lludiu‑se, Hermano, e eu também. A sua felicidade, se alguém lha pode dar neste
mundo, não sou eu; e Deus sabe que sacrifícios eu não fada para merecer esta
graça'
Amália
proferiu estas palavras com uma tristeza maviosa e afastou‑se para que o mando,
apesar do escuro, não lhe visse as lágrimas.
—
Não tem razão, Amália. Se eu me lembrasse de oferecer‑lhe uma flor, já usada
por outra senhora, não a rejeitada ofendida? E me condenara, se eu procurasse
antes para dar‑lhe uma destas violetas, abertas agora mesmo com o sereno da
noite, cheias de perfume e colhidas por mim em sua intenção? Pois assim deve
ser também com as flores d'alma. Eu não pude nascer no dia em que a conheci,
para que minha vida começasse com o meu amor. Quero, porém, despir‑me do homem
que fui, porque esse não lhe pertence. e portanto não existe mais.
—
Então é por mim? perguntou a moça com surpresa
—
Pois duvidava?!
Amália
sorriu. A nuvem se tinha desvanecido: seu céu de amor estava outra vez límpido
e sereno
Entretanto
quando, ao recolher. ficou só como na véspera, pensou consigo que se Hermano a
amasse, tanto quanto ela o amava não teria lembrança para quanto não fosse o
seu amor. A filha não esquecia perto dele a mãe de quem nunca se apartara até
aquele dia? Por que não esquecia ele também uma pessoa finada desde cinco anos?
Achava
alguma razão nas palavras do marido. mas dispensara de bom grado aquela
delicadeza Desejada antes ser querida por Hermano com tanto anelo e transporte
que tudo para ele fosse novo nessa casa, nesses sítios, cheios do passado.
Apreciava
a pureza das flores d'alma recém‑abertas ao seu influxo; mas também pensava que
em uma alma completamente regenerada pelo amor, já não devia de haver flores
murchas e fanadas, como eram essas recordações que pungiam o mando.
Os
três primeiros dias depois do casamento, Amália e Hermano os passaram no mesmo
delicioso a sós Comiam no retiro do toucador, não como casados da véspera, mas
como namorados em partida campestre, às ocultas.
Esse
cunho de improviso e de folia era o que mais encantava Amália. Ela que sempre
fora menina e travessa queria descontar agora os dias de tristeza. A solenidade
da vida conjugal e a serenidade da posição de dona de casa, assustavam a seu
gênio faceiro. Assim esquivando‑se a pretexto de recato e acanhamento.
retardava o momento de assumir suas graves funções
Chegou
porém, o dia.
A
mesa estava servida para o almoço. Amália tomou a cabeceira e o marido sentou‑se
ao lado.
—
Onde está Abreu? perguntou o dono da casa Chame‑o!
A
voz de Hermano tinha uma severidade desusada Nunca Amália ouvirá aquele timbre
Ela fitou o semblante do marido, e notou a expressão áspera de sua fisionomia e
o olhar imperativo com que ele recebeu o velho criado.
Abreu aproximou‑se da mesa com o passo passo dos
soldados; dobrou a cerviz por um movimento de engonço, e perfilou‑se
Quando
Hermano passou‑lhe o prato destinado a Amália ele o conservou na mão imóvel.
Foi preciso que o amo lhe desse ordem terminante:
—
Para a senhora!
Então
sem voltar‑se, estendeu o braço e pôs o prato na cabeceira. Nem então, nem
depois, durante todo o almoço, o seu olhar, que ele tinha sempre levantado,
buscou a dona da casa.
Não a queria ver, e não a viu.
CAPÍTULO 16
Tinham
decorrido do quinze dias depois do casamento.
Amália
já não podia esconder a sua tristeza. As apreenções, que a haviam assaltado
antes, ai estavam realizadas. Sacrificara‑se para fazer a felicidade do homem a
quem amava, z essa união ia tomar‑se um suplício cruel para ambos.
Nos
primeiros dias, a moça enlevada pelos lirismos do coração virgem, sentiu‑se
feliz. Em sua inocência, não desejava mais do que possuía. As efusões de
Hermano, sua palavra comovida, seu olhar temo e faqueiro sorriso bastavam para
encher‑lhe a alma e transbordar.
Havia,
porem, nesse afeto uma timidez que ela não podia definir. Ainda não recebera
uma só carícia; quando solteira tomada tais demonstrações como desacato Mas
agora o seu titulo de esposa as santificava. Parecia‑lhe que seu mando devia
ter o mesmo direito que seu pai, de beijar‑lhe a face e estreitá‑la ao peito.
Talvez
Hermano se acanhasse, e não tivesse animo de tomar essa liberdade. Compreendia
o seu enleio pela comoção, que tinha ela também, só de pensar nisso. Mais tarde
vida a intimidade
Então
o espírito da moça lançava‑se no vago, ansioso de perscrutar o desconhecido; e coligindo em suas
recordações idéias outrora incompreensíveis, rasteava um pensamento que a fazia
enrubescer Não sabia nada; não suspeitava; mas pressentiu.
Julgou‑se
humilhada, não somente em sua beleza, mas em sua dignidade de senhora.
Ao
mesmo tempo outras circunstâncias concorriam para agravar a sua posição já melindrosa
Hermano que a princípio se mostrava cheio de atenções e somente ocupado dela,
agora tinha freqüentas distrações, sobretudo na mesa.
Seus
olhos a evitavam ainda mesmo quando lhe dirigia a palavra. Ficava por muito
tempo calado e absorto. Às vezes no meio daquela concentração, fitava a mulher,
observava‑lhe as feições com estranheza, e no seu semblante pintava‑se a
surpresa Desviava então a vista, e de novo caia na sua abstração
Uma
manhã, Amália mandou mudar a disposição da mesa colocando seu talher na outra
cabeceira, para não ter o sol de face. Veio o marido que tomou maquinalmente o
seu lugar costumado. Pouco depois reparando na alteração, lançou à moça um
olhar de espanto; e saiu precipitadamente da sala onde não voltou esse dia,
dando‑se por incomodado.
Amália
adivinhou que era o lugar de Julieta na mesa. Hermano não querendo que ela o
ocupasse, lhe havia destinado outro. Daí a sua contrariedade. Não obstante a
impressão que lhe causou o fato, a moça procurou disfarçar, e convidou o mando
para jantarem nessa tarde à sombra das mangueiras
O Abreu por seu lado continuava para ela, o mesmo
homem de pau do primeiro dia. Em quinze dias, ainda não lhe e tinha dirigido um
olhar, nem uma palavra. Com a sua máscara impassível isolava‑se dela inteiramente.
Durante
a viuvez de Hermano, foi o velho quem governou a casa, onde por seu intermédio
as ordens de Julieta eram ainda executadas, como no dia em que ela as dera. Os
outros criados obedeciam‑lhe como a um chefe; e tinham‑lhe senão mais respeito,
decerto que mais temor do que ao amo. Era este que os pagava; mas era aquele
que os alugava e os despedia.
A
presença da nova dona da casa não alterou esse regime. Era preciso que alguém
mandasse, e o ex‑furriel levado pela hábito ia determinando o serviço como
dantes. Assim, quando Amália quis ensaiar a sua autoridade doméstica achou uma
resistência muda mas tenaz.
Se
mandava mudar um traste, ou fazer alguma leve alteração no arranjo da casa,
ninguém lhe opunha a menor observação. Mas no outro dia as coisas voltavam ao
estado anterior. Indagada a razão os criados respondiam repetindo a palavra de
Abreu P a ordem". Isso queria dizer que assim se havia feito por vontade
de Julieta.
Amália
retraiu‑se para evitar conflitos que a obrigavam a um ato de rigor. Muito a
afligida se a sua união com Hermano desse causa à expulção do velho criado, que
era já um amigo da casa. Ela tinha bom coração; e lembrava‑se de que o Abreu
fazia aquelas coisas pelo muito amor à sua filha de criação.
Todavia,
quando pensava na sua posição, não podia dissimular que era naquela casa uma
intrusa, que estava ocupando o lugar de outra não só nos atos da vida
domestica, mas também no coração do mando. A cada instante a realidade fazia‑se,
para mostrar‑lhe que era demais ali
D.
Felícia. não tardou em aperceber‑se da tristeza da filha e interrogou‑a. Nada
colheu. Amália guardou o seu segredo. Não queria afligir a mãe; e ainda menos
expor Hermano a uma censura ou queixa que talvez ainda mais o separasse dela.
Uma
noite, porém, a inquietação materna venceu o delicado escrúpulo da sogra, e D.
Felícia. tomando à parte Hermano, perguntou‑lhe o que tinha Amália
—
Nada. Ela queixou‑se?
—
Não, e é o que mais me aflige. Pois ainda não reparou na mudança que ela tem
feito nestes últimos dias?
A
senhora mostrou‑lhe de longe a moça que nesse momento sentada de perfil e
pensativa era a mais bela estátua de melancolia, que um artista poderia
imaginar. O mando ficou a olha‑la compassivo.
—
Eu lha dei, Hermano, para fazê‑la feliz.
—
E é o meu ardente desejo; e se bastasse o meu amor!...
A
entrada do Sr Veiga pôs termo a esse diálogo. D. Felícia. aproximou‑se da filha
e tentou ainda surpreender a causa daquela mágoa. Desta vez não fez nenhuma
pergunta direta; indagou disfarçadamente de mil coisas a ver se descobria algum
arrufo. A moça, porém, não manifestava a mais leve sombra de ressentimento..
Eram
dez horas.
Amália
estava só e pensava no seu destino quando Hermano veio, como costumava, sentar‑se
perto dela. Conversaram algum tempo.
—
Anda triste, Amália? disse por fim o marido
—
E não tenho razão, Hermano?
Ele
tomou a mão da mulher, e atraindo‑a a si reclinou‑se para beijar‑lhe o rosto.
Amália, cheia de rubores e júbilos. palpitante de emoção, abandonou‑se ao doce
impulso; mas de repente, faltando‑lhe o apoio, o talhe descaiu sobre o recosto.
Hermano soltara‑lhe as mãos, no momento em que seus
lábios iam tocá‑la; e erguera‑se pálido, hirto, com a visão pasmada, como se um
espectro surgisse a seus olhos.
—
Perdão! murmurou com a voz abafada.
Esta
súplica, porém, Amália conheceu que não se dirigia a ela, pois o olhar do
marido passava por ama de sua cabeça e fitava‑se além.
Afinal
dominando‑se, sentou‑se de novo, reportando à mulher aquela mesma exclamação
com a V02 mais livre.
Amália
sob a influência daquele estranho pavor, emudecera. O marido não se animou a
quebrar esse doloroso silêncio. Depois de um instante de perplexidade, murmurou
umas palavras de despedida, levantou‑se e saiu do toucador.
O
primeiro sentimento de Amália depois da surpresa que lhe causara esse fato foi
a revolta contra o império que exercia a lembrança de Julieta no ânimo do
marido, e a fraqueza desse homem que se deixara subjugar àquele ponto.
A
mulher, ou antes, a sombra que sala do seu túmulo para disputar‑lhe o marido,
ela a odiava. Que direito mais tinha Julieta sobre Hermano? Deus não os havia
separado, levando‑a deste mundo e deixando‑o, a ele, livre de amar e escolher
outra esposa?
Esse
marido lhe pertencia agora; e ninguém lho podia roubar. Tinha‑lhe jurado
fidelidade; e só ela podia dar‑lhe a ventura. Essas recordações que afligiam
incessantemente o espírito de Hermano, eram uma vingança de Julieta. Essa
mulher nunca tinha amado sinceramente o esposo; pois não sabia sacrificar‑lhe o
egoísmo de sua afeição.
A
este assomo, ou talvez delírio de sua imaginação exaltada pela idéias
fantásticas do mando, sucedeu, como era natural, o desanimo, o abatimento, a
prostração do como e do espírito.
Vergou
ao jugo da fatalidade que a oprimia; e compreendeu que só havia para aquela
situação insolúvel uma saída. Era a separação.
Cumpra
romper quanto antes o laço que não era mais vínculo de união, e sim a algema de
um
Mas
como? Que razão daria a seus pais e ao mundo para aquele ato de tamanha
gravidade e escândalo! De si não se preocupava. O que não queria era lançar
qualquer mácula sobre o marido, a quem amava, e sujeitá‑lo à reprovação geral.
Falada
a Hermano logo no dia seguinte, e combinaram o melhor meio.
Separar‑se‑iam
como dois irmãos queridos que o destino aparta e longe, lembrando‑se um do
outro revivendo os dias felizes que haviam precedido o seu casamento se amariam
eternamente.
Mais
tarde, talvez!...
Essa
meiga esperança veio afagar o seu pensamento, cerrou‑lhe as pálpebras e trouxe‑lhe
um sono plácido, depois de tão violentas emoções.
CAPÍTULO 17
Era
tarde quando Amália acordou Deitada ainda e envolta nas alvuras de suas roupas
de linho, entrou a olhar amorosamente os objetos que a cercavam, os móveis, as decorações
da parede, as árvores do jardim que ensombravam as janelas.
Tinha
saudades deste sonhado ninho de seu amor, onde, se neo havia achado a ventura,
fruira tão doces momentos de enlevo conversando com seu Hermano.
E agora era preciso e com eles as ilusões de uma de
que lhe fugira quando a supunha segura. Sua esperança despedia‑se de todos
estes companheiros de solidão, que lhe haviam sorriso nos primeiros dias.
Hermano
desde muito cedo andava na chácara. Ao entrar em casa viu a mulher sentada na sala,
a cismar. Ela revolvia as dolorosas impressões da véspera, para fortalecer‑se
em sua primeira resolução.
Vendo
o mando que parara indeciso, enviou‑lhe o seu melancólico e resignado sorriso.
Hermano
aproximou‑se então e disse‑lhe impetuosamente com uma voz sufocada:
—
Sou um miserável, Amália; sacrifiqueia‑a indignamente Amei com paixão, jurei
fazer a sua felicidade, que era a minha, uni o meu ar, seu destino: e eu não me
pertencia, não era livre, não podia dispor de mim! Sou um miserável!.. Trai a
minha primeira mulher, e à segunda enganei!...
—
Não me enganou, Hermano; afaste semelhante idéia. Eu sabia o que se passava em
seu espírito e previ o que veio acontecer. Se alguém errou, fui eu que me iludi
numa esperança falaz, mas tão grata. que ainda me deixaria enlevar por ela se
fosse possível.
—
Sabia, Amália?... Mas por que não me repeliu? E eu, cego que estava, roubei‑lhe
a felicidade, a existência inteira!
—
Tinha esse direito. Ela lhe pertencia.
Hermano
afastou‑se arrebatadamente com um gesto de desespero Amália foi a ele com o
pensamento de acalmar essa agitação e de convencê‑lo da necessidade de uma
separação que aplacada os seus escrúpulos, e pouparia a ela novos e cruéis
martírios.
O
marido, porém, voltara para dizer‑lhe:
—
Não se aflija, Amália!.. Cometi uma perfídia, mas não passou de uma
alucinação!... A minha honra e a minha lealdade não me abandonaram ainda e espero em Deus que não me hão de
desamparar nua cá. Juro restituir‑lhe intata a sua liberdade que eu tive a
desgraça de comprometer. Resigne‑se por alguns dias a este constrangimento. Ele
cessará, deixando‑a outra vez senhora de si.
—
É sobre isto mesmo que desejava falar‑lhe, Hermano. Refleti, penso que uma
separação é necessária para o sossego de ambos. De vemos porém fazê‑la de modo
que não nos fique mal. O meio é que eu não sei. Se fosse possível!... Lembrei‑me
que na Europa, com a viagens, ninguém suspeitada, nem mesmo mamãe.
—
Oh! ninguém suspeitará! . Terei o cuidado de ocultar! Tomarão por um incidente
um acaso!
Hermano,
preferindo estas palavras com um tom equívoco e um sorriso pungente, deixou a moça entregue a suas
tristes reflexões.
A
princípio ela não penetrou o verdadeiro sentido daquela resposta do mando.
Pensou que ele se referia apenas ao pretexto da separação prometendo achar um
que poupasse desgosto à família e não desse azar à maledicência.
Mas
aquele estranho sorriso, e a qualificação de acidente dada pelo marido ao fato
que devia desligá‑los, lançou em seu espírito uma dúvida cruel. Que pretendia
ele fazer então, simuladamente, para que os outro o atribuissem a uma
casualidade?...
Amália
ergueu‑se, trêmula de horror. Adivinhara! Hermano tinha resolvido matar‑se. Era
essa a significação daquele juramento que fizer de restituir‑lhe a liberdade
Para não expor a reputação dela, de sua esposa, é que prometia levar a efeito o
plano sinistro de modo que ninguém desconfiasse do suicídio.
Ansiosa
buscou o marido; mas este se havia recolhido ao gabinete onde ela não animou a
entrar.
Imagine‑se
o que devia sofrer, pensando que naquele mesmo instante em que tremia atenta ao
menor rumor, ele, Hermano, talvez carregava o revólver, armava‑o e...
despedaçava a cabeça com um tiro!
Nessa
aflição foi ate a porta do gabinete para escutar, e volveu mais tranqüila
lembrando‑se de que o marido lhe falara em uma demora de alguns dias. Tornou,
porém, assaltada de novos terrores, e chegou a bater.
Hermano
abriu. Encontrando Amália, saiu. fechou vivamente a porta sobre si, e dirigiu‑se
com a moça para a sala próxima. Sua expressão era calma e natural; ninguém
diria que ele ocultava um desígnio funesto.
Essa
placidez aquietou a agitação da moça que para não toldar novamente o animo do
marido absteve‑se de revelar o seu terror. Hermano como se nada houvesse
ocorrido entre ambos, passou a conversar acerca de coisas indiferentes,
lembrando à mulher vários divertimentos, que ela recusou.
Na
continuação da conversa, Amália confiada nessa tranqüilidade, e querendo de uma
vez acabar com a sua inquietação, perguntou ao marido de que meio se tinha
lembrado para realizar a separação.
—
O meio? disse ele. Só há um, Amália.
—
Qual?
—
A morte.
—
Então, é verdade, quer matar‑se? exclamou a moça com desespero, e travando das
mãos do marido, como para retê‑lo junto a si.
—
Já sou um morto Metade do meu ser há cinco anos desceu à sepultura. A outra
metade que ficou neste mundo, para expiação de suas culpas, não teria
perturbado a sua felicidade, se estivesse reunida àquela e restituída ao pó.
—
Mas eu não quero que morra, Hermano! Deu‑me sua vida; ela me pertence; a mim
também.
—
Não a podia dar, Amália! Não lhe confessei já que sou indigno, que a enganei?
—
Pois bem! Esta união é nula; não existe. Mas a culpa é toda minha: carregarei
com ela. Direi a minha mãe que arrependi‑me, que não tinha propensão para o
casamento, que não sei fazer a felicidade de meu marido... Direi o que for
preciso, contanto que viva, Hermano!
—
Para quê, Amália, se a amo, e não posso e não devo amá‑la! respondeu o marido.
—
Também eu o amo; mas não penso em matar‑me!
Hermano
sorriu:
—
Não preciso matar‑me; basta morrer.
—
Jura‑me que não atentará contra sua vida?
—
Já disse, Amália. Não careço do suicídio. Para que soprar a luz, se ela apaga‑se
por si?
·—
Mas dê‑me sempre esse juramento para sossegar o meu coração.
—
Juro.
—
Por ela?... Por Julieta?
—
Sim.
Estas
cenas abalaram profundamente o espírito de Amália. que abandonou a idéia de separar‑se
do mando, naquelas circuntâncias, deixando‑o sob a influência de tão sinistros
pensamentos. Apesar da confiança de Hermano, o juramento deste não lhe
dissipara as apreenções. Não suspeitava um ardil; mas temia uma fatalidade
Até
ali, o recato tão natural em uma noiva, e ainda aumentado pela reserva do
mando, lhe tolhia a liberdade na própria casa em que devia ser dona. Nunca se
animara a penetrar no aposento de Hermano nem se lembrara disso.
Agora,
porém, sua posição. Tinha o dever de guardar e defender a vida do marido; e
para isso carecia de toda sua vigilância e solicitude. Era mais que tempo de
assumir a sua autoridade doméstica sem a qual não poderia isentar‑se da grave
responsabilidade de esposa.
Assim,
quando no dia seguinte Hermano foi à cidade, ela depois de haver obtido dele a
promessa de voltar cedo e de o ter acompanhado com os olhos até perdê‑lo de
vista, saiu da janela resolvida a ensaiar o seu papel de dona de casa.
Abreu,
conforme o costume, acabava de arranjar o aposento do amo, e ia sair fechando a
porta para guardar a chave no bolso, quando Amália entrou. Passado o seu
espanto, o velho decidiu‑se a ficar de guarda à moça, que se sentara em uma
cadeira de balanço.
Esse
intento, porém, frustrou‑se
—
Pode retirar‑se, Abreu, disse a senhora com um tom brando, mas firme.
O
ex‑furriel estremeceu, como se outrora o seu capitão lhe desse uma ordem
contrária ao detalhe;' e ficou imóvel.
—
Não ouviu?
Aquela
interrogação e o olhar que a acompanhara, expulsaram o criado do gabinete. Ficando
só, Amália fechou‑se por dentro e começou a sua investigação.. Temia que o
marido tivesse armas ocultas ou veneno. O que achou foram algumas chaves de
aço, dourado, enfiadas em um aro de prata.
Adivinhou
de que aposentos eram estas chaves, e abrindo com uma delas a porta de
comunicação, passou ao toucador de Julieta. As janelas cerradas deixavam o
interior em um tênue crepúsculo.
Ao
dar o primeiro passo, Amália recuou e presa de súbita vertigem, cairia, se as
mãos não agarrassem convulsivamente as cortinas da poda.
Instantes
depois, recolhendo‑se precipitadamente ao seu quarto a moça caia de joelhos,
banhada em lágrimas e murmurando:
—
Louco!.. Louco, meu Deus!...
CAPÍTULO 18
Entrando
no toucador de Julieta, escassamente alumiado pela claridade que filtrava entre
as laminas das rótulas, Amália tinha visto, ali sentada junto à mesa de charão,
tal como lhe aparecera três meses antes a desconhecida.
Fora
o abalo dessa visão que lhe causara a vertigem. Tomando a si, ainda a viu no
mesmo lugar, impassível. Encheu‑se de indignação e adiantou‑se para expulsar de
sua casa aquela indigna.
Apesar
do estrépito dos móveis arrastados, a desconhecida permaneça imóvel
Amália
travou‑lhe do pulso, e achou‑o gelado. Era então um cadáver que tinha diante
dos olhos? Não; apesar do horror que a invadiu, pôde afina conhecer a verdade.
Era
uma figura de cera.
Atônita
com esta descoberta, a moça lembrou‑se da vez que avistara a desconhecida
recostada no sofá; e correndo ao quarto de dormir lá encontrou‑a no mesmo
lugar, coberta com um véu de seda.
Era
outra figura de cera representando a mesma mulher com a única diferença da
posição. Não podendo imprimir movimento à estátua, o artista o tinha suprido
com a mudança da atitude e do gesto.
Qual era, porém, essa mulher assim reproduzida? Amália
não duvidava um instante que fosse Julieta, embora as figuras não no espírito a
lembrança vaga que tinha da primeira esposa de Hermano.
Mas
o retrato de Julieta ali estava, suspenso à parede do toucador, em um grande
quadro a óleo, que representava a moca em corpo inteiro. Pela data via‑se que
fora tirado um ano depois de seu casamento.
Entre
a estátua e o retrato havia muita afinidade de expressão; mas nos traços e
contornos das feições, a diferença era sensível. Poderiam ser duas irmãs; não
eram, porem, a mesma pessoa.
Hermano
amara então outra mulher depois de Julieta? Amália repelia essa conjetura, que
repugnava com o culto do mando pela esposa a quem primeiro se ligara.
A
caixa de carvalho com preparos de flores artificiais, tinha embutido na tampa o
nome de Julieta. O lenço e as roupas das figuras de cera estavam marcadas com
três iniciais J. S. A.; e da mesma forma o livro que Hermano lia à noite, um
volume de Spirite de Teófilo Gautier.
A
perturbação que a descoberta de tais particularidades lançou no espírito de
Amália, cresceu com a leitura salteada de alguns trechos daquela obra
fantástica. Uma luz sinistra, como a do relâmpago, feriu c seu pensamento;
compreendia enfim!
O
amor de Hermano era uma demência. Não fora uma mulher que ele havia adorado, e
adorava ainda; mas um fantasma, um ente de sua imaginação. Esse ideal, ele
tinha encarnado em Julieta, desde o primeiro momento em que a vira.
Por
que misteriosa relação se havia operado essa transfusão, ninguém o poderia explicar, senão por uma afinidade
moral.
Morta
Julieta, o ideal se tornara outra vez fantasia ou sonho, até que pela mesma
ignora afinidade se encarnara de novo na imagem de painel do Veroneso, Ester ou
Suzana, como dissera o Teixeira, referindo a visita ao Louvre.
Estas
figuras, pensava Amália, são a cópia daquela imagem, a que Hermano dera o nome
de Julieta por ser o da primeira encarnação viva de seu ideal. Mas elas não
tinham nada de comum com a morta senão essa misteriosa relação, que
transparecia em uns longes da fisionomia .
Julieta
não era formosa; e toda a sua graça estava unicamente m expressão. A mulher
reproduzida em cera era uma beleza estatuária que ofuscava inteiramente o
retrato. Como pois tinha Hermano identificado
essas duas imagens tão diversas?
Este
fenômeno só podia explicar‑se por um modo. Hermano não idolatrava a forma,
embora a admirasse quando ela realizava a sua imaginação . O que ele amava era
uma larva, um espírito, um duende de beleza imaterial, que transportara a
principio para uma mulher, depois para urna imagem e afinal para uma estátua.
Estes
pensamentos trabalhavam na mente de Amália, quando recolhida a seu toucador, e atirada em uma
poltrona baixa, ela cogitava sobre a cruel revelação que se fizera em sua
consciência.
—Achou
em mim alguma coisa que recordou Julieta ou antes t seu ideal. Foi minha voz
cantando a ária da Lucia que o atraiu; mas falta‑me esse encanto, essa
fascinação misteriosa que um momento supôs encontrar.
Lançando
um olhar ao espelho, onde se refletiam as suas forma esplêndidas, ela suspirou:
—
De que vale minha beleza? Ele não a vê, não a percebe. Julieta não era bonita:
seu retrato está muito parecido; agora recordo‑me bem dela, de quando passeava
no jardim. Entretanto ele a amou. Eu podia ser feia e muito feia; que também me
amaria se eu fosse a mulher que ele criou sua imaginação.
Mas
por que não seda ela sua mulher?
Seu
amor cheio de abnegação inspirou‑lhe então uma resolução generosa. Sua
existência, que já não tinha sedução nem fim ela a dedicada à felicidade do
homem a quem amava. Adivinhara o segredo dessa criação ideal da mente enferma
de Hermano, e a realizaria em si.
Deus
lhe daria forças para operar essa nova encarnação. Dominando então o espírito
do mando, o restituiria à razão, ao mundo, ao verdadeiro amor; e seriam
felizes.
Para
isso era preciso, ela bem o compreendia, fazer um sacrifício de sua
personalidade; sacrifício doloroso para as almas superiores, que têm uma
individualidade, e que não podem a exemplo das outras almas de estalão, despir
o seu eu, e receber como a cera o molde da vulgaridade.
Ser
outro, negar‑se a si mesmo, suprimir‑se moralmente, não se pode imaginar mais
terrível suplício para uma consciência altiva; e foi a este que Amália se
condenou no intento de salvar o marido ou perder‑se com ele.
Decerto,
naquela moça travessa, risonha, incrédula e leviana, que antes enchia de sua
alegria as salas e os divertimentos, ninguém pensara encontrar um ano depois a
mulher dominada pela paixão mais sublime, e capaz de um heroismo de amor raro
na vida ordinária.
Semelhante
aberração não era senão aparente. Ai nesse contraste manifestava‑se o efeito de
uma evolução psicológica muito natural. A insensibilidade de Amália fora apenas
a infância prolongada de uma alma extremosa que só muito tarde conheceu a
paixão.
Em
vez de gastar‑se nos ensaios precoces de amor, com que as meninas antecipam a
adolescência, exaltando os perfumes de sua flor, Amália preservara o coração
dessa babugem e quando amou foi com todas as energias e arrojos da mulher.
Este
romance de Amália, a incompreensível encarnação
do delírio de um cérebro enfermo, essa admirável intuição, é que me
propus contar; e agora sinto que não o conseguirei.
Como
descrever a paciente eliminação de uma ama a despojar‑se de sua individualidade
para infundir em si o ser imaginário, filho de uma alucinação?
Hermano
voltara da cidade Encontrando‑se com ele à hora do jantar, Amália notou a sua
expressão esquiva e o olhar suspeitoso que lhe perscrutava a fisionomia. O
Abreu sem dúvida contara que ela estivera no gabinete; e o marido receava‑se
dos efeitos dessa investigação.
O
modo expansivo e natural com que o tratou a mulher, foi dissipando as suspeitas
de Hermano, que por vezes mostrou um contentamento sincero.
Quando
se levantaram da mesa, Amália, disse ao marido com meiguice:
—
Eu tinha tanta vontade de conhecer Julieta!
Hermano
disfarçou por delicadeza; mas insistindo a mulher e reiterando perguntas sobre
as feições de Julieta, ele foi ao gabinete donde voltou com uma fotografia
colorida. Era a mesma imagem do retrato a óleo.
—
Como e bonita! exclamou Amália com um entusiasmo que o seu amor a obrigava a
simular.
—
Isso é apenas a sombra de sua beleza. Falta‑lhe o olhar, o gesto, a voz.
—
De que cor eram os olhos?
—
A cor... Não sei: mas o olhar ainda o sinto: era como o seu agora, Amália.
A
moça corou e as pálpebras rosadas vendaram os seus belos olhos cheios de luz
Continuaram
a conversar acerca de Julieta
Mais
tarde Hermano ficou distraído, absorto. Amália sabia agora o motivo Eram os
sintomas da alucinação que, em certa horas e ocasiões, desvairava o espírito do
marido
A
moça foi sentar‑se ao piano e abriu a ária do Fausto Hermano lhe dissera um
momento antes que era uma das peças favoritas de Julieta.
Ela
cantou: e o marido que já se tinha retirado, veio sentar‑se outra vez a seu
lado, e ficou ali preso a sua voz.
À
última nota ele estremeceu e partiu. Esse canto era de Julieta que o chamava.
CAPÍTULO 19
Cala
a tarde
Amália
e Hermano sentados no jardim, contemplavam em silêncio as esplêndidas
decorações, que os arrebóis desfraldavam no horizonte sobre as encostas da
montanha.
A
moça afinal curvou a fronte e cerrando a meio os cílios para concentrar‑se
disse ao marido:
—
Ainda havia neste mundo uma felicidade para mim, Hermano: e essa não lhe
custaria o menor sacrifício.
O
olhar do mando interrogou‑a: ela respondeu com a voz súplice;
—
Não me pode dar o seu amor; bem o sei, e não o exijo; mas a sua amizade, sua
confiança, por que motivo a recusa a quem não tem outro pensamento senão a sua
felicidade? Não lhe mereço nem esta prova de estima?
Hermano
quis interrompê‑la: ela não consentiu:
—
Não poderíamos viver como dois irmãos que se querem, e se amparam mutuamente
nas suas tristezas e infortúnios? Por que há de ter segredos para mim que nada
lhe oculto do que se passa em minha alma? Cuida que tenho ciúmes de Julieta?
Engana‑se.
Vendo
pintar‑se a dúvida no semblante do marido, Amália apressou‑se em desvanecê‑la:
—
Quer uma prova? Estive ontem no toucador de Julieta e entretanto, quando voltou
da cidade, ainda achou‑me nesta casa, onde me conservo. Se eu não o amasse e a
ela também, com amor de irmã, sofreria essa preferência, que era uma humilhação
cruel para a esposa?
Desde
esse momento, Hermano não teve mais segredos para Amália; e esta, durante as
suas longas confidências pôde ler nas recordações do marido como nas páginas de
um livro inédito, toda a história do homem a quem se unira.
Hermano
contou‑lhe uma e muitas vezes as menores circunstâncias de sua vida com
Julieta. As impressões nessa alma opulenta eram profundas. A efígie da mulher
amada ficara ali fundida como uma estátua ideal.
Amália
passava as horas nos aposentos, que tinham pertencido, e ainda pertenciam, à
sua rival Ai coligia todos os traços, todos os vestígios, deixados pela pessoa
que os habitara e com esses indícios esforçava‑se em recompor a mulher que ela
não conhecera, e que mal vira de longe com olhos de criança.
Ao
cabo de uma semana, sabia os gostos de Julieta, os seus perfumes prediletos, os
moldes de que ela mais gostava, as cores de seu agrado, as músicas favoritas;
todas essas simpatias que formam a originalidade de um caráter.
Amália
tinha o mesmo corpo de Julieta com alguma diferença das formas que nela eram
mais ricas e harmoniosas. Vencendo a repugnância que a principio sentira, a moca
chegou a trajar‑se completamente com as roupas e enfeites da morta.
Pensava
acaso que esses objetos lhe transmitiriam pelo contato alguma coisa da pessoa a
quem haviam servido? Ou buscava apenas criar uma semelhança que favorecesse a
ilusão de Hermano?
Ela
própria não sabia que tenção era a sua. Não calculava: cedia à influência de um
desejo intenso. Queria ser a mulher que Hermano amava, como Julieta fora antes
dela.
Nos
livros que achou na pequena estante do toucador, também Amália colheu muitas idéias,
de que se apropriou para imitar o misticismo do original que ela se propunha
copiar.
Um
dia disse a Hermano:
—
Eu acredito que Julieta me quer bem. Quando estou aqui, no seu quarto, tenho um
contentamento, como se estivesse em sua companhia. As vezes parece que ela me
abraça.
Outro
dia, no meio de uns idealismos romanescos, teve esta inspiração:
—
O amor uniu a alma de Julieta à sua, Hermano. Por que não poderá Unir da mesma
forma a alma dela à minha, que também o ama?
A
transformação de Amália já era tão perfeita, que enganava Hermano e até o
Abreu, sobretudo quando ela disfarçava com uma renda preta os seus lindos
cabelos louros, ou mesmo tingia com algum cosmético.
O
velho criado habituou‑se a ver nela a imagem de Julieta, e desde então envolveu‑a
na afeição que votara à sua filha de criação. Estimou a, como se estima um
retrato de pessoa a quem se quer
Quanto
a Hermano, tinha momentos de completa ilusão, em que supunha se transportado
aos tempos de seu primeiro casamento. Apagava‑se então de sua memória todo o
tempo que vivera depois da morte de Julieta e ele era feliz como se ainda
tivesse a seu lado a mulher a quem amava.
De
repente, porém, Uma circunstância qualquer um incidente mínimo, que Amália não
percebia, talvez um volver dos olhos, uma inflexão de gesto, o contato das
mãos, rompia o encanto; e ele recuava como o homem que vê abrir‑se por diante
um abismo.
Fugia
então; e ia abrigar‑se daquela sedução no quarto de Julieta perto da estátua,
que para ele representava o despojo material da alma de sua primeira mulher.
Amália
recomeçava então com a mesma energia e perseverança aquela indução paciente,
que terminava em decepção. Crescia‑lhe a esperança, porque a sua fascinação
aumentava a cada instante ela não podia duvidar. Hermano resistia ainda mas
chegaria o momento, em que se deixaria vencer, e então ele lhe pertenceria e
seriam felizes.
Se
adivinhasse o efeito que essa luta produzia no animo do marido, e o extremo a
que o arrastava, ela decerto a abandonaria, cheia de horror.
Com
efeito Hermano, quando libertava‑se da fascinação que Amália exercia sobre ele,
enchia‑se de pavor pelo perigo que o ameaçara. Estivera a ponto de cometer esse
crime que era para ele o mais indigno por ser o roubo da honra e da vida.
Via‑se
já réu de um adultério infame!
Ter
enganado a moça a quem se unira em segundas núpcias sacrificando a sua
felicidade, que ele não podia dar‑lhe, era já uma vilania de que se envergonhava, e da qual decidira resgatar‑se
com a morte. Que nome teria essa indignidade, se a agravasse com a mácula da
virgem pura e ingênua que se confiava de sua lealdade?
Era
preciso, ele o senha, pôr um termo a esta situação, e salvar‑se de um perjúrio
atroz que o condenaria à eterna separação de Julieta Mas tinha de esperar não
podia dispor de sua vida antes de oito dias
Quanto
lhe custou a passar esta ultima semana!
Na
ocasião em que cegamente apaixonado por Amália, decidiu pedi‑la em casamento,
Hermano refletiu sobre o destino que devia dar às relíquias da primeira mulher
Não podia guardá‑las como tinha feito até ali, porque seria isto uma
infidelidade à esposa atual: não se animava, porém, a abandonar e como que
expelir de si essas imagens e objetos, tão impregnados de sua vida, que faziam
parte dela. Seria mutilar‑se moralmente.
Tomou
uma resolução que pudesse conciliar tais escrúpulos Reuniu naqueles dois
aposentos de Julieta tudo que lhe pertencera e fechou‑os como se fossem a
sepultura onde jazia a alma da primeira mulher. Quanto à outra sepultura, onde
jaziam as cinzas, dessa não se lembrava, nem a conhecia: era um pouco de pó
Depois,
quando na própria noite do casamento o indefinível terror de um adultério
fantástico apoderou‑se de seu espírito enfermo, ele refugiou‑se nos aposentos
de Julieta, encerrou‑se ali naquele túmulo, onde encontrava o sossego e a
ressurreição do passado.
Agora,
porém, já não tinha esse refúgio já não podia transpor os umbrais da eternidade
para encontrar‑se com Julieta e amá‑la. Até ali, nesse mesmo santuário, onde
guardara todas as relíquias da morta, ate ali o perseguia a formosa imagem de
Amália.
Sentia
a tépida fragrância que a moça deixara na sua passagem, e que derramava um
sopro de vida nesses objetos frios e abandonados. O toque de outras mãos animara
aquela solidão e as mesmas estátuas de cera pareciam influir‑se de outra alma
mais ardente, mais apaixonada do que a de Julieta
Assim,
quando Hermano corria a abrigar‑se ai da sedução de uma Amália parecida com
Julieta, ele já não encontrava a mulher de outros tempos, mas sim uma nova
Julieta semelhante a Amália e mais formosa que a primeira
Quantas
vezes não voltou buscando essa visão encantadora! Mas já não a via; Amália
tinha‑se feito Julieta aquela esplêndida beleza de outrora se eclipsara.
Se
em um desses momentos, a formosa criatura se mostrasse qual era, em seu fulgor,
Hermano teria sucumbido: e talvez aquela insana obsessão que o afligia se
dissipasse para sempre.
Mas
a coincidência não se deu; e afinal chegou a época em que Hermano julgou‑se
livre de dispor de sua vida. Só faltava a ocasião esta não tardou.
Havia
um baile no dia seguinte. Amália a principio repugnou ir, por fim cedeu às
instâncias do marido. Seu traje era copiado de um que achara no guarda‑roupa de
Julieta, um vestido de tule com sombra e laivos escarlates.
Estava
encantadora, mas senha‑se inquieta e nervosa. Durante a dança não tirava os
olhos de Hermano, e a cada instante chamava‑o para perto de si.
De
repente perdeu‑o de vista. Acabada a quadrilha, ansiosa perguntou por ele a D.
Felícia.
—
Ah!... Esqueceu a carteira e um amigo convidou‑o a jogar. Foi a casa não tarda
Pediu‑me que te prevenisse.
D.
Felícia voltando à conversa que interrompera para dizer rapidamente estas
palavras, não viu a palidez da filha.
Amália dominou o tenor que a invadira, dirigiu‑se ao
toucador, envolveu‑se na capa e desceu as escadas apressadamente. No patamar
encontrou o lacaio e mandou chegar o carro.
— Para casa! Depressa!... disse abrando‑se sobre as
almofadas do cupê.
Depois, enquanto os cavalos trotavam pela calçada da
Glória, ela travando as mãos convulsivamente, murmurava:
—
Chegarei a tempo, meu Deus?
CAPÍTULO 20
Amália
tinha razão de assustar‑se.
Hermano
deixara o baile, decidido a realizar a sua idéia fatal. Contava que o pretexto
do esquecimento da carteira lhe daria Uma hora de liberdade, e tanto bastava
para consumar o plano medonho que havia concebido.
Ele
prometera à mulher e a si mesmo jurara, dar à sua morte aparências de acidente,
de desastre casual. Escolhera o incêndio. Sempre fora sectário da cremação. O
corpo abandonado da alma era para ele matéria em corrupção: o fogo a purificava
e consumindo imediatamente a forma humana, evitava a sua profanação, pois outro
nome não têm certas cerimônias fúnebres
Mas
o seguro de sua casa não estava findo; e a consciência não lhe permitia fraudar
os seguradores com a indenização que teriam de pagar a seus herdeiros pelo dano
do incêndio Por isso foi obrigado a adiar o seu projeto. O termo da apólice
tinha expirado na véspera estava livre enfim.
Ao
sair do baile, tomou um tílburi que o levou a casa. O portão estava cerrado
apenas, e o Abreu, que fumava sentado na escada, veio ao seu encontro, admirado
de não ver a senhora.
—
Esqueci a minha carteira e vim buscá‑la para pagar uma divida de jogo mas sinto‑me
tão fatigado que não tenho animo de voltar ao baile vou escrever um bilhete à
senhora.
Deste
modo afastou o velho criado cuja vigilância temia que pudesse frustrar o plano. No bilhete que por ele enviara à mulher,
depois de escusar‑se de ter saído do baile e de não ir buscá‑la, rematava com
estas palavras.
"Agora,
Amália, é que eu conheço quanto a amo: pois esta curta ausência de alguns
instantes parece‑me uma separação eterna.
Ficando
só Hermano trancou‑se no toucador de Julieta. Depois de fechar as portas e
janelas abriu os bicos de gás, e sentou‑se em face da figura de cera. O
aposento era apenas esclarecido pela vela do castiçal colocado sobre a mesa.
Acreditava
aquele visionário que era bastante a vontade de reunir‑se a Julieta para que
sua alma deixasse este mundo e se restituísse à sua metade. Nessa convicção,
havia jurado a Amália não matar‑se; e tinha consciência de respeitar o seu
juramento.
Quando
o gás que se exalava dos bicos abertos, se fosse condensando no aposento quase
hermeticamente fechado, e afinal se inflamasse à luz da vela produzindo uma
explosão, o incêndio o acharia morto já, e não serviria senão para destruir o
seu despojo e as relíquias de Julieta, que não devia abandonar à alheia profanação.
Ele
e tudo quanto amara não seriam mais do que cinzas, dispersas pelo vento; e no
dia seguinte ninguém suspeitaria da verdade. Um incêndio é fato comezinho e tão
freqüente!
Em cima da mesa estava uma fotografia em ponto grande,
cuja moldura inclinada em estante mostrava Um lindo retrato. Amália o havia
tirado poucos dias antes; e naquela tarde, aproveitando‑se de uma ausência do
marido, o colocara ali para fazer‑lhe uma surpresa.
Esse
retrato não era a imagem fiel da beleza radiante de Amália, mas a cópia da
transformação que sofrera a moça depois de seu casamento, e especialmente nos
últimos dias. Assim como o louro brilhante de seus cabelos se ofuscara na
sombra de uma renda preta, também os fulgores dos grandes olhos, e o sorriso
cheio de graça, eram amortecidos por uma doce melancolia. Parecia que um véu de
timidez apagara‑lhe a formosura cintilante.
A
luz da vela dava de chapa sobre a fotografia. Hermano olhou e viu pela primeira
vez o retrato. Reconheceu o vulto, a atitude, o gesto, as roupas as jóias e uns
matizes indefiníveis que só ele talvez percebesse. Era Julieta: mas através da
sombra de Julieta, ao longe, como uma estrela imersa no azul surgia a imagem
luminosa de Amália.
Foi
então que esse cérebro já tão exaltado precipitou‑se na derradeira e mais
violenta das alucinações que o tinham abalado. As duas mulheres que Hermano
havia amado neste mundo, erguiam‑se em sua alma, como duas soberanas em campo
de batalha, para disputarem o seu despojo.
Quando
já a consciência da realidade o ia abandonando, ouviu rumor na casa e teve Um
rápido momento lúcido para recear que o viessem perturbar na consumação de sua
idéia sinistra. Ergueu‑se e saiu fora, lembrando‑se de fechar a porta, para que
não se escapasse o gás, já condensado no aposento.
Foi
mesmo às escuras trancar a comunicação para o fundo da casa onde estavam os
criados, e livre do receio, caiu de novo no delírio, que o havia acometido, e
no qual se apagaram os últimos lumes da razão.
Nos
raptos da imaginação, viu outra vez as duas esposas, a quem havia jurado
fidelidade. Às vezes, elas se aproximavam, perto, muito perto, uniam‑se
estreitamente, e fundiam‑se numa só massa vaporosa, donde surgia afinal essa
mulher dúplice, essa Julieta‑Amália, que estava pintada no retrato.
Pouco
depois a imagem da esposa gêmea também por sua vez apagava‑se em uma sombra
indecisa, da qual se destacavam as duas moças, cada uma no seu tipo distinto
Julieta com a esquisita elegância, que vestia de uma graça divina a sua figura
apenas regular e Amália com a deslumbrante beleza, que materializava a sua
alma, vazando‑a em formas esplêndidas
Em
face uma da outra Amália triunfava. Ela era a aurora: e sua rival o crepúsculo
suave e encantador. Assim Julieta timidamente, envolta no seu perfume de
modéstia, afastava‑se: e a sombra gentil e melancólica ia‑se desvanecendo até
esvair‑se no fulgor que derramava a formosura da rival.
Foi
então que Hermano sentiu uma dor agudíssima, como se lhe arrancassem vivo o
coração. Arrojou‑se com todo o ímpeto de seu amor para chamar a esposa, que se
separava dele pela eternidade. Era ela a primeira amada, e nesse momento a
única. A ela devia pertencer exclusivamente por isso iam unir‑se outra vez: a
morte que os tinha apartado não tardaria em ligá‑los de novo, revertendo‑os um
ao outro.
—
Julieta! exclamou ele em um grito de ânsia.
A esposa o tinha ouvido ali. Ali estava ela a seu
lado. A luz desaparecera e os seus raios se haviam transformado em estrelas.
Foi ao trêmulo dessa luz celeste que ele divisou a sombra amada. Ela trazia o
seu traje favorito de baile, o mesmo com que a viu da primeira vez.
Julieta lhe cingira o colo com o braço e ele sentia o
doce contato do talhe gentil na sua espádua e no seu flanco. Depois a voz terna
e queixosa da esposa murmurou‑lhe ao ouvido como um arpejo:
—
Ingrato!...
—
Perdão, Julieta, perdão! confesso que Amália me fascinou: mas o que eu amei
nela foi unicamente a tua lembrança, a tua alma que às vezes eu ouvia em seus
lábios, e via em seus olhos. O que era ela, e só ela, a sua beleza, essa eu a
admirava mas enchia‑me de terror. Resistia à tentação, refugiando‑me em teu
amor: e se tu não me amparasses, teria sucumbido! Salvei‑me, preservei minha
alma ela está pura como a deixaste, e vai reunir‑se à tua pela eternidade. Eis
o momento. Recebe‑me em teu seio; não me deixes mais um instante neste mundo,
pois aqui mesmo, perto de ti, próximo a infundir‑me no teu ser, eu a vejo, eu a
sinto, a ela, a Amália: e tenho medo que venha arrebatar‑me de b e separar‑nos
para sempre.
A
voz de Julieta murmurava‑lhe então ao ouvido:
—
Não tenhas este receio, meu Hermano. Queres saber por que tu vês Amália, em
mim, em tua Julieta? É porque ela te ama como eu te amei, com igual paixão. Ela
e eu não somos senão a mesma e única mulher que tu sonhaste. Podes dar‑te a
ela: é como se te desses novamente a mim. Vi que estavas triste e só no mundo;
que a minha lembrança não te bastava; e então revivi em Amália, transmiti‑lhe
minh' alma para que fosse tua esposa; para que tu me adorasses em uma imagem
viva, que te retribuisse, e não em uma estátua de cera.
—
Embora; estou cansado de viver; quero reunir‑me a ti, em espírito, desprendendo‑me
dessa materialidade impura, que pode subjugar a alma, e arrasta-la ao crime.
Amália é minha esposa perante os homens; e desde que nela está a alma de minha
Julieta, ela é também minha esposa perante Deus; poderei pertencer‑lhe
legitimamente, porque te pertenceria a ti: mas essa poderosa sedução de sua
beleza, se eu a sofresse de outra mulher?.. Não passaria de novo pelo martírio
que me atormentou?... Melhor é nos reunirmos no céu recolhe a alma que deste a
Amália, e leva‑nos com ela.
A
voz melodiosa suspirou outra vez:
—
Queres morrer, meu Hermano? Queres deixar o mundo? Pois bem, dá‑me tua alma:
deixa‑me absorvê‑la na minha, e confundi‑las que não formem senão uma só. Então
abandonaremos a terra e iremos esconder‑nos no seio de Deus, que nos criou.
Então
Hermano sentiu uns lábios que se embebiam nos seus e hauriam‑lhe a vida. Esse
beijo ideal foi como a inalação do espírito que animara o seu corpo e que
absorvido por Julieta, o desamparou. Desde esse momento ele não foi mais do que
uma múmia.
E
assim, como um corpo ermo de vontade e pensamento, seguiu Julieta, ou melhor
diria, a alma gêmea em que se tinham condensado a sua e a da esposa.
Atravessaram uma série de anos eram os de sua existência, cujo curso haviam
remontado, e agora de novo repassam. Todas as fases de sua história, ele as
reviveu com uma mulher que não era nem Julieta, nem Amália mas as duas vazadas
em um só molde.
O
passado e o presente se travavam e confundiam. O seu primeiro casamento que
fôra de manhã, e o segundo que celebrara à noite as noivas, de tipos diversos;
aqueles dois toucadores, um azul e branco, e outro rosa e ouro; todas essas coisas
se haviam identificado.
A
mulher que ele amara tinha a beleza de Amália e a alma de Julieta. Com essa
mulher percorreu toda a sua vida até aquele momento em que resolvera deixar o
mundo para consumar o consórcio da eternidade.
Uma
nuvem branca e nítida vendava‑lhe o céu. Ali estava um objeto cuja forma não
distinguia; parecia‑lhe o corpo, depurando a alma e preparando‑a para a bem‑aventurança.
Ele
estava só; junto dele não havia outro corpo, mas uma essência divina, em que se
imergia; um resplendor que se condensava em formas voluptuosas para envolvê‑‑lo
de luz. As chamas dessa luz o abrasavam, mas com uma lava doce e inebriante,
que lhe acrisolava o ser. Enfim ele sentiu que sua alma desprendendo‑se das
cinzas, remontava ao céu.
Nesse
momento D. Felícia que voltava do baile com o marido soltou um grito de terror
vendo o grande clarão que avermelhava o horizonte.
Um
incêndio violento devorava a casa de Hermano.
CAPÍTULO 21
Cinco
anos permaneceram em abandono as ruínas da casa incendiada. Um ilhéu que
alugara a horta para negócio, tratava da chácara.
Já
se tinha desvanecido a lembrança do sinistro, quando uma manhã, cerca de onze
horas, parou ao portão uma vitória descoberta, conduzindo pessoas com o aspecto
muito conhecido de viajantes que desembarcam.
O
assento principal era ocupado por uma senhora de rara formosura, trajada com
elegância, e por um homem de parecer distinto, ainda moço apesar dos fios de
prata que matizavam os seus cabelos negros.
Em
frente a eles ficava uma gentil menina de quatro anos, na qual reproduzia‑se
como em uma miniatura a beleza da senhora, porém, com certo contraste de
fisionomia Tinha as feições da mãe, os mesmos traços, a mesma expressão; mas os
cabelos e os olhos eram castanhos, e não louros.
Um
criado velho, que vinha ao lado do cocheiro saltara do carro e abrira o portão,
enquanto o cavalheiro apeava‑se com a família.
—
Espera‑nos aqui, Abreu, disse a senhora entregando a filha ao criado, e não
deixe Julieta apanhar sol.
Tomando
então o braço do marido, seguiu pelo passeio gramado da chácara na direção das
ruínas que apareciam por entre as árvores e Indicavam o lugar onde fora a casa.
O
incêndio desmoronando o teto e consumindo todo o madeiramento, deixara em pé as
paredes do edifício de modo que de fora via‑se como um esqueleto a antiga
habitação com seus aposentos e divisões.
—
Lembras‑te, Hermano? perguntou a senhora fitando no marido seus grandes olhos
cheios de luz.
—
De tudo, Amália, respondeu simplesmente o marido.
Como
para confirmar a sua asseveração, Hermano começou a recordar as reminiscências
dos dias que ali vivera com Amália, apontando os menores incidentes e os
lugares da casa em que tinham ocorrido.
Amália
respirou do soçobro em que trazia a alma e que debalde tentava abafar. A casa,
que a memória de Julieta enchia antigamente, agora não era mais povoada senão
de sua lembrança.
Daí
passaram à chácara e percorreram os sítios, em que tão viva era para Hermano a
presença de sua primeira mulher. Essas recordações primitivas tinham sido
apagadas pelas outras recordações mais recentes de seu amor por Amália.
Outrora
o passado surgia com tanto vigor na vida desse homem que anulava o presente.
Agora era o presente que reagia de modo a substituir‑se ao passado. Hermano não
se lembrava de ter amado nunca outra mulher senão a sua Amália e identificava
tão completamente as duas esposas, que Julieta já não era para ele senão um
primeiro nome daquela a quem se unira para sempre.
Afinal
sentaram‑se para descansar, em um sombrio formado pela copa de uma mangueira
frondosa, donde pendiam ramas de maracujá
Hermano
recolheu‑se, como para penetrar mais profundamente em suas recordações, e
murmurou:
—
Não me lembro do incêndio!
Amália
conchegou se, e apoiando o rosto na espádua do marido começou a sussurrar‑lhe
ao ouvido, cobrindo a face com a mão para esconder o rubor:
—
Tu me deixaste no baile... Eu tive um pressentimento cruel e corri... Felizmente ainda encontrei‑te;
estavas na sala em pé. Foi talvez o rumor de meus passos que te perturbou Eu
prendi‑te nos meus braços com receio que me fugisses. Tu me contaste tudo
Querias morrer para não ser infiel a Julieta e tinhas preparado o incêndio que
devia consumir o teu corpo, e a imagem daquela que h amavas. Eu também devia
morrer, e consumir‑me contigo. Foi então que nossos lábios se tocaram. Tu me
pertencias. e eu salvei‑te para o meu amor. Era preciso arrancar‑te desta casa;
quando partimos, sem que nos vissem deixei nela o incêndio que a devorou Depois
partimos para a Europa e...
—
E eu renasci para a felicidade, disse Hermano, cingindo a loura cabeça da moça
e pousando‑lhe um beijo na face.
—
Esta manhã, vendo ao longe, de bordo do vapor a praia de Botafogo, tive medo, e
por isso trouxe‑te aqui apenas desembarcamos. Se estes lugares ainda
conservassem para ti alguma sombra do passado, partiríamos hoje mesmo para
Montevidéu, para qualquer parte do mundo, onde a tua felicidade não corresse
perigo Mas estou tranqüila podemos reconstruir a nossa casa e viver aqui, onde
nasceu o nosso amor.
—
De tudo isto só uma coisa não compreendo. disse Hermano.
—
O que? perguntou Amália assustada.
—
Fica tranqüila; a alucinação passou; tenho a razão inteiramente livre. O que
não compreendo é como sendo tu e Julieta tão diferentes uma da outra, têm aos
meus olhos uma semelhança tão grande, que parecem a mesma.
Nesse
momento as folhas rumorejaram.
A
menina que estava impaciente pela mãe, iludira a vigilância do velho criado e
correra para Amália cujo vestido descobrira através da folhagem.
—
Olha! disse a moça apresentando ao marido o rostinho gracioso da filha.
—
É verdade!
Fonte:
ALENCAR, José de.
Encarnação. Rio de Janeiro: Ediouro, s.d.
(Prestígio).
Texto proveniente de:
A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro
A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo
Permitido o uso apenas para fins educacionais.
Este material pode ser redistribuído livremente, desde que
não seja alterado, e que as informações acima sejam mantidas. Para maiores
informações, escreva para .
Estamos em busca de patrocinadores e voluntários para nos
ajudar a manter este projeto. Se você quer ajudar de alguma forma, mande um
e-mail para e saiba como isso é possível.
Nenhum comentário:
Postar um comentário